O acarajé, bolinho de feijão fradinho votivo à orixá Iansã1, originário da África Ocidental, se popularizou como àkàrà (“bola de fogo”) para ajeum2 (“para comer”), sendo compreendido como “comer bola de fogo”. Contudo, há explicações distintas sobre a origem do termo.

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Crédito: Ofício das baianas de Acarajé (IPHAN, 2007)

Para Laroche (2004), as palavras acarajé e akra derivam do iorubá e podem ser entendidas como “bolinho que se compra cantando”. Já para Yeda Pessoa de Castro (2001), existem duas definições possíveis para o acarajé, sendo a primeira de origem bantu, que varia entre substantivo e verbo, significando “fogo, carvão, incendiar”. E a segunda, considera acará um substantivo ligado às religiões afro-brasileiras, que pode ser entendido como “mecha de algodão embebido em azeite de dendê que é incendiado no rito de confirmação dos devotos de Iansã”.

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Crédito: Christiano Jr – Negra de ganho de comida, séc. XIX (IPHAN, 2007).

Vivaldo da Costa Lima (2010), defende que a palavra acarajé seja uma abreviação do pregão entoado pelas antigas negras de ganho: “Ô acara jé ecó olailai ó”. O pesquisador conclui que se refere a uma palavra de origem iorubá-nagô derivada do termo àkàrà (LIMA, 2010).

Embora a definição do termo acarajé não seja um consenso entre pesquisadoras/es, o reconhecimento da sua origem africana e disseminação no Brasil através das mulheres negras de terreiro certamente é.

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Crédito: Ofício das baianas de Acarajé (IPHAN, 2007).

A “obrigação do acarajé” era realizada por mulheres negras, que vendiam o acarajé pelas ruas em gamelas de madeira redonda, para custear os gastos das iniciações religiosas nos terreiros de candomblé: “Escolhidas por Oiá-Iansã, essas mulheres recebiam autorização para preparar e comercializar publicamente o alimento votivo da deusa poderosa, orixá dos ventos e tempestades” (LODY, 1987).    

Para Santos (2013) e para o IPHAN e MinC (2007), as baianas de acarajé são herdeiras do legado deixado pelas mulheres pretas escravizadas no Brasil que atuavam como ganhadeiras, ou melhor, negras de ganho, e por sua conexão e participação no culto à orixá na diáspora.

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Crédito: Christiano Jr: – Trajes de baianas, séc. XIX (IPHAN, 2007).

O crescimento das igrejas neopentecostais e os ataques frontais às religiões de matrizes africanas3, cuja estratégia sistemática se assenta na demonização desses espaços e seus adeptos, criou um ambiente hostil aos candomblecistas. Com isso, surgiram os “bolinho do senhor” ou “bolinho de jesus”, que nada mais são que uma tentativa de romper com tradição que conecta as baianas de acarajé (e o próprio acarajé) aos terreiros, ou seja, o apagamento da essência desse alimento: ser comida votiva de orixá. 

Com o risco iminente de descaracterizar o ofício, mais que secular, das baianas de acarajé, através dos esvaziamento dos sentidos da atividade e da modificação dos significados simbólicos que envolvem o preparo do acarajé, promovidos pelas igrejas, impõe o desafio da salvaguarda:

O registro do Ofício das Baianas de Acarajé como Patrimônio Imaterial Brasileiro, no Livro de Saberes do Iphan, aponta para a relevância de tradições afro-brasileiras que integram a cultura brasileira, em especial esse ofício, como importante símbolo de identidade étnica, regional e religiosa. Portanto, trata-se também de um instrumento de reconhecimento oficial da riqueza e do enorme valor do legado de ancestrais africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade. (IPHAN, 2007, p. 61)

Na certidão de patrimônio imaterial emitida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, instituído pelo Decreto No 3.551, em 04 de agosto de 2000, há o reconhecimento do ofício das baianas de acarajé como bem cultural. O documento reconhece, ainda, a ligação dos alimentos que compõem os tabuleiros das baianas e as indumentárias utilizadas por elas com o culto ao orixá.

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Crédito: Luiz A. Dualibi – Baiana de acarajé em seu tabuleiro. Salvador-BA, 1983 (IPHAN, 2007).

O IPHAN descreve o preparo do acarajé, bem como a maneira como as baianas e seus tabuleiros devem se apresentar publicamente, com o objetivo de preservar e reconhecer a importância desse bem cultural e patrimônio cultural imaterial do Brasil. 

Contudo, nos últimos anos outras práticas, talvez menos ruidosas que as igrejas neopentecostais, mas tão descaracterizantes quanto elas, vem surgindo… São as pessoas que vendem “acarajé vegano”.

Parece um contrassenso falar sobre “acarajé vegano”, uma vez que o acarajé, em si, é um bolinho de feijão fradinho, cebola e sal, fritos no azeite de dendê.

Tudo o que vier depois disso é complemento opcional, ou seja, o caruru, vatapá, camarão seco (que possuem ingredientes de origem animal), salada e pimenta são adicionados, ou não, de acordo com o gosto de quem consome. Logo:

Não existe acarajé vegano

Mas o que há é um movimento vegano mainstream, majoritariamente branco, incapaz de refletir sobre os impactos racistas de se alterar o receituário de um alimento votivo à orixá. E, mais ainda, alterar o acarajé, bolinho que não possui nenhum ingrediente de origem animal, cujo preparo tradicional é reconhecido e certificado como patrimônio cultural e imaterial do Brasil, pelo IPHAN. 

Se há restrições alimentares, que elas sejam plenamente respeitadas e determinados alimentos evitados. Agora, apropriar-se de alimentos votivos à orixá para satisfação pessoal é o puro suco do privilégio da branquitude. 

Referência:

IPHAN. Ofício das baianas de acarajé. Brasília-DF, 2007.

SANTOS, Vagner José Rocha. O sincretismo na culinária afro-baiana: o acarajé das filhas de Iansã e das filhas de Jesus. UFBA, Salvador-BA, 2013.

LIMA, Vivaldo da Costa. A anatomia do acarajé e outros escritos. Corrupio. Salvador-BA, 2010. 

LAROCHE, Maximilien. Akara, akra, acarajé: o gosto da África nas Américas. LAROCHE, Maximilien et al (org). Haiti 200 anos de diáspora e utopias de uma nação americana . UEFS. Feira de Santana-BA, 2004. 

1 –  Oyá, Oiá, Yansã.

2 – Ajeum / / Unjé: do verbo “comer” em iorubá.

3 – A morte da Mãe Gilda é um dos casos mais emblemáticos dos ataques das igrejas aos terreiros de candomblé. A data de seu falecimento, 21 de janeiro, deu origem ao Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa desde 2007.

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  • Cauane Maia

    Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestr...

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