Carnaval – uma ode ao racismo recreativo
Em 30 de abril de 1995, Mãe Stella de Oxóssi, considerada uma das Ialorixás mais importantes do país e a mais politizada do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, falecida em 27 de dezembro, concedeu uma entrevista ao jornalista Clécio Max, do A Tarde, onde fez duras críticas a exploração dos trajes, ornamentos e ritmos rituais do candomblé durante o carnaval de Salvador, declarando:
Os espetáculos eram financiados por algumas pessoas que não tinham o mínimo conhecimento da pureza do candomblé. Estavam fora da realidade e confundiam o axé com plumas e paetês. Em 1993 voltei a defender essa posição, juntamente com representantes de outros terreiros, quando surgiu a proposta de se utilizar o tema na decoração do Carnaval de Salvador (CAMPOS, 2003)[1].
A apropriação dos elementos constitutivos do candomblé pela indústria do turismo e entretenimento, eram alvos recorrentes da articulação em prol do combate de tais práticas da Mãe Stella. Sua postura combativa, para preservar a cosmovisão dos terreiros, encontrou na sociedade racista e capitalista um grande entrave.
No Brasil, não são raros os casos de promoção e apropriação dos referenciais negros, quer sejam estéticos, religiosos ou artísticos, por parte de uma branquitude[2] ávida por lucro e manutenção de privilégios. Saudosos do período escravocrata, eles esvaziam e distorcem os significados e protegem-se no pacto narcísico, reforçando, constantemente, o racismo recreativo[3].
As piadas de cunho racista e representações caricatas do povo preto nos meios de comunicação, divertem a branquitude, pois buscam legitimar a subalternização da negritude. Tais “brincadeiras” desvelam a moralidade de uma sociedade que estabelece quais membros merecem respeito e quais seguem sendo inferiorizados. Esse comportamento é hoje definido como racismo recreativo.
Recentemente, a polêmica festa de aniversário de Donata Meirelles, então diretora da Vogue Brasil, neste mês, em Salvador (BA), cidade com o maior contingente negro fora do continente africano, evidenciou a saudade que a elite burguesa do país sente do período escravocrata. Mulheres negras trajadas como “mucamas” e “trono de sinhá” compuseram o cenário para as fotos que circularam pelas redes sociais, que mais pareciam reproduções das pinturas de Debret sobre o Brasil Colônia contemporâneo.
Vale salientar que as mulheres negras que aparecem em fotos polêmicas da famigerada festa na internet, são trabalhadoras. Mas onde está o equívoco, afinal?
Nesse caso, a indústria de turismo e entretenimento da capital baiana, alimentou os fetiches escravocratas da elite burguesa brasileira, quando paramentou as mulheres negras, que ali trabalhavam, com indumentárias muito próximas às utilizadas no período escravocrata, e comportamentos análogos ao mesmo tempo histórico, imputando às vidas negras, uma atualização da subserviência para a branquitude.
Quem lucra com a fetichização dos corpos negros através da reprodução intencional do Brasil Colônia em “festas temáticas”, são os grandes players de entretenimento e uma elite que se utiliza de tais eventos para reforçar o racismo recreativo, logo, a subalternização da população negra.
Em torno dessa celeuma, a branquitude tenta esquivar-se da responsabilidade alegando ser “só uma festa”. Enquanto outros apontam os negros presentes no evento como totens, para legitimar sua narrativa racista. Mais ainda, há aqueles que, são lidos enquanto “brancos no Brasil”, se promovem através da cultura negra, mas se isentaram da responsabilidade crítica sobre o ocorrido, reforçando o pacto narcísico e chancelando o caráter utilitarista acerca do “mundo negro” que pseudo-promovem, como é o caso de Ivete Sangalo.
Nesse mesmo sentido, outro acontecimento recente passível de profunda análise, surge com a cantora Daniela Mercury e sua constante apropriação dos referenciais negros como forma de autopromoção e lucro individual. A artista que diz “homenagear” o povo preto, é incapaz de ouvir essa mesma população, e já foi protagonista de diversos fatos emblemáticos, que puseram em xeque sua capacidade de empatia com a negritude, por puro ego e/ou, talvez, intencionalmente posicionada enquanto branquitude.
Em 2018, quando segmentos do movimento negro denunciavam a Rede Globo, por representar na novela Segundo Sol, que seria ambientada em Salvador, um elenco embranquecido, destoando da realidade da cidade mais negra do país, a cantora Daniela Mercury, no auge do seu privilégio da branquitude, acusou de “policiamento exagerado” as reivindicações do povo preto.
Do mesmo modo, Daniela Mercury foi incapaz de uma autocrítica acerca do episódio que protagonizou em 2017, quando levou para o carnaval sua versão de blackface, reforçando, de modo caricato, sua percepção racista sobre a negritude. Pior que o ocorrido, foi a declaração da cantora deu aos meios de comunicação para justificar sua atitude reincidente, uma vez que em 2007 apareceu publicamente em uma festa à fantasia, de “Nega Maluca”:
Eu sou preta de pele branca porque a cultura da minha cidade é afro-brasileira e é isso que eu amo. Eu sou Michael Jackson ao contrário, adoro ser negra, minha música é negra, meu empoderamento é negro.
Fogo amigo. Fogo nos racistas
A ausência de empatia da cantora Daniela Mercury, eleita “rainha do axé” e “a cor da cidade” de Salvador, por uma elite racista que se vê representada nela, ao passo que detém os meios de comunicação e entretenimento para promovê-la. Bem como seu recorrente argumento de “homenagear” o povo preto, mesmo quando essa população afirma se sentir ofendida com tais atos, desvelam uma indústria capitalista, que entretém através de uma causa pseudo-progressista, mas que na sua essência não passa de apropriação e racismo recreativo.
No caminho do apagamento de um discurso antirracista e identitário, construído a duras penas pelos negros, Daniela Mercury lança a música e clipe Pantera Negra Deusa, em homenagem ao Ilê Aiyê e à Wakanda, de acordo com a perspectiva de uma artista incapaz de problematizar um blackface ou entender a importância da representação negra em uma novela transmitida em horário nobre e ambientada em Salvador.
No texto de Silvia Nascimento (2019), publicado no site do Mundo Negro, uma análise sobre alguns trechos da música levantam questões importantes:
A “Rainha do Axé” não leu sobre ou apenas não se importou com o processo de criação do filme Pantera Negra. A culpa é daqueles que validam a voz de uma mulher branca descendentes de italianos, como a voz da negra cidade de Salvador. Ela pode ajudar a dar visibilidade, mas não pode sair cantando e dançando como se fosse preta. Ela não é.
Sou paulista, não posso falar sobre os negros baianos. Há amigos no clipe da música e não tenho nada contra os negros que participam do processo ( e eles estão lindos), mas Daniela Mercury é a rainha do clipe sobre Wakanda. Daniela dança de dreads, roupas afro, entra na água, sai da água como se fosse Iemanjá, reverencia os fundadores do Ilê, mas ela é o centro das atenções (NASCIMENTO, 2019).
Os maliciosos argumentos de “homenagear” ou “dar visibilidade” à causa negra, quando partem de pessoas lidas como brancas no Brasil, ainda que “bem intencionadas”, não podem se sobrepor à dignidade humana do povo preto. Ou seja, se o “homenageado” se diz ofendido, ele deve ser escutado.
Tampouco, tais argumentos podem apagar questões identitárias e não complexificar a pigmentocracia vigente, que são nevrálgicas para pensar as relações de poder balizadas pelo racismo de marca que vivemos, por afro-conveniência da branquitude.
Vestir-se de “Nega Maluca”, fantasia que sintetiza o racismo científico da degenerescência, onde se atribuía aos traços negroides a propensão ao crime ou loucura no século 19, e, ao mesmo tempo, se auto-proclamar “rainha do axé” ou contribuinte da luta antirracista é contrassenso.
Do mesmo modo, de nada adianta usar fotos, camisas, faixas, gritos de ordem ou postagens em redes sociais com o tema “Marielle, presente!” ou “Vidas negras importam”, se você não se propõe a rever seus privilégios, não ouve o que os segmentos do movimento negro dizem sobre a dignidade humana do povo preto, silencia a população negra e seu protagonismo e não respeita os lugares de fala.
Mais do que assumir o papel de fiscal da “branquitude de turbante” durante o carnaval, precisamos responsabilizá-los pela fetichização dos elementos constitutivos da cosmovisão e identidade negra e pôr fim ao racismo recreativo, sobretudo quando tais comportamentos partem daqueles que se reivindicam progressistas e dizem lutar ao “nosso lado”.
Não podemos mais estabelecer relações afetivas com quem desrespeita nossa existência. Para fogo amigo, fogo nos racistas!
[1] CAMPOS, A. F. Vera. Mãe Stella de Oxóssi: perfil de uma liderança religiosa. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro. 2003.
[2] “Branquitude significa pertença étnico-racial atribuída ao branco. Podemos entendê-la como lugar mais elevado na hierarquia racial, um poder de classificar os outros como não brancos, dessa forma, significa ser menos do ele é. Ser branco se expressa na corporeidade, isto é, a brancura, e vai além do fenótipo. Ser branco consiste em ser proprietário de privilégios raciais simbólicos e materiais.” (MÜLLER; CARDOSO, 2017)
[3] Para maior aprofundamento sobre racismo recreativo, sugiro a leitura do livro: O que é racismo recreativo?, autor Adilson Moreira, publicado pela coleção Feminismos Plurais.