Se eles derrubam, nós reconstruímos a democracia
Soraia Mendes faz uma análise jurídico-política dos atos fascistas do último domingo (8)
Apenas uma semana após a mais emblemática e simbólica posse de um Presidente da República da história brasileira, e de uma semana igualmente significativa, em que ministros e ministras se sucederam na assunção de seus cargos com discursos que nos fizeram lembrar que sim, pobres, negros, indígenas, mulheres, LGBTI+s, existem (vide cerimônia de posse do Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida) e de que estarão todos, todas e todes no orçamento (vide, igualmente, o ato de posse da Ministra do Planejamento, Simone Tebet), uma nova onda de ameaça à democracia se agigantou em Brasília.
Para o espanto mundial, conduzidos mansa e cordialmente pela própria Polícia Militar do Distrito Federal até o local de seus crimes, no último domingo (08/01) a horda bolsonarista, que já se encontrava em frente ao Quartel General do Exército brasileiro, recebeu reforços que desembarcaram na Capital Federal, vindos de lugares ainda não totalmente sabidos, para também fazer história. Mas, desta vez, para escrever uma página histórica marcada não pela dignidade democrática, e sim pela repugnância que o fascismo inspira.
A síntese do dia de ontem, para mim, foi um misto de indignação, cogitações jurídicas e, confesso, de profunda tristeza e dor. Cada prédio, quadro, cadeira destruída é a materialização da nossa democracia que foi violada. Será difícil apagar da memória as cenas do plenário do Supremo Tribunal Federal destruído. Nem sei se será possível esquecer um cenário tão dantesco…
Enfim… Ainda demorará um tempo até que essa ferida, que como eu tantas e tantos democratas carregam, esteja cicatrizada. Entretanto, como jurista, me toca aceitar o desafio de pensar a história enquanto ela se faz e compartilhar com todas, todos e todes que me leem neste momento algumas reflexões.
Em um arremedo de subsidiariedade – considerada a total inércia do Ministério Público, na figura do Procurador-Geral da República no calor dos acontecimentos – tanto a Advocacia-Geral da União, quanto o Senador Randolfe Rodrigues recorreram ao Supremo Tribunal Federal solicitando, em resumo, um, a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão com fundamento no art. 319 do Código de Processo Penal e no art. 283, também do CPP; e, dois, “o afastamento do Sr. Anderson Torres da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal – ou o impedimento de sua posse, caso ainda não tenha sido efetuada –, ante a notória inaptidão para o exercício do cargo”; e a “inclusão do Governador do Distrito Federal, Sr. Ibaneis Rocha, e do Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Sr. Anderson Torres, como investigados no inquérito dos atos antidemocráticos”.
Cabe aqui um breve esclarecimento jurídico no intuito de dissipar qualquer dúvida sobre a legalidade da decisão tomada pelo Ministro Alexandre de Moraes, já que, em apressada análise, há quem ventile a tese de que o julgador tenha agido “de ofício” e/ou de modo arbitrário. Isto é, de o Relator do inquérito tenha decidido sem um requerimento expresso que consubstanciasse todos e, principalmente, o mais importante de seus atos, qual seja: o afastamento do Governador do Distrito Federal por noventa dias.
Uma tese como essa não pode prosperar. Nada há de arbitrário na determinação judicial adotada.
Sob a perspectiva processual penal, constitucional e convencional as medidas cautelares diversas da prisão – ou melhor seria dizer, alternativas à prisão – só se justificam se (e somente se!) estiverem presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva. Não estando, de outro lado, o julgador adstrito ao rol apresentado por quem por elas representa.
Em verdade, as medidas cautelares a serem aplicadas devem observar, simultaneamente, a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; e a sua adequação à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282, do Código de Processo Penal).
Ou seja, analisando as possibilidades legalmente oferecidas como substitutivas da privação da liberdade uma medida cautelar diversa da prisão é sempre a opção menos gravosa. Por isso que, ainda que possa causar estranheza o afastamento de um Governador, o fato é que se trata de um suspeito da prática de delitos que, digo eu, veiculam a proteção jurídico-penal do bem mais valioso que coletivamente temos: a democracia (arts. 359-L e 359-M do Código Penal[1]).
Requeridas que foram a inclusão do Governador como investigado nos autos do Inquérito 4.879, bem como a aplicação de medidas alternativas à prisão (art. 319 c/c art. 283, ambos do Código de Processo Penal) optou o Ministro, digo eu, muito acertadamente, pela suspensão do exercício de função pública do Governador Ibaneis, eis que há justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais (art. 319, VI, CPP).
É impossível imaginar que a chegada de milhares de golpistas a Brasília tenha se dado sem o concurso, no mínimo, da omissão dolosa das autoridades públicas de segurança e, por óbvio, acima delas, do próprio Governador do Distrito Federal. E o efetivo da PM era visivelmente irrisório para a proteção do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal.
Além do que não se pode esquecer que o Governador Ibaneis não titubeou em reconduzir uma figura como Anderson Torres ao cargo de secretário de segurança no DF. O mesmo que, como o Ministro da Justiça mostrou-se leniente em relação aos crimes de Roberto Jefferson, aos atos terroristas de 12 de dezembro, quando da diplomação presidencial, e às ameaças de explosão noticiadas em 30 de dezembro.
Por sinal, a manifestação inicial dele por meio de uma rede social, desde a Flórida (EUA) onde se encontra, simplesmente lamentando o que ocorria em Brasília é um verdadeiro ultraje às instituições democráticas e ao povo brasileiro.
Por isso, faço questão de repetir aqui as palavras do Ministro em sua ordem nos trechos em que afirma que:
A omissão e conivência de diversas autoridades da área de segurança e inteligência ficaram demonstradas com (a) a ausência do 5 Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 78E3-C1DB-76A1-C122 e senha D0AB-FF1B-D2CA-40F9 INQ 4879 / DF necessário policiamento, em especial do Comando de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal; (b) a autorização para mais de 100 (cem) ônibus ingressassem livremente em Brasília, sem qualquer acompanhamento policial, mesmo sendo fato notório que praticariam atos violentos e antidemocráticos; (c) a total inércia no encerramento do acampamento criminoso na frente do QG do Exército, nesse Distrito Federal, mesmo quando patente que o local estava infestado de terroristas, que inclusive tiveram suas prisões temporárias e preventivas decretadas.
O descaso e conivência do ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública e, até então, Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, ANDERSON TORRES – cuja responsabilidade está sendo apurada em petição em separado – com qualquer planejamento que garantisse a segurança e a ordem no Distrito Federal, tanto do patrimônio público – CONGRESSO NACIONAL, PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA e SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – só não foi mais acintoso do que a conduta dolosamente omissiva do Governador do DF, IBANEIS ROCHA, que não só deu declarações públicas defendendo uma falsa “livre manifestação política em Brasília” – mesmo sabedor por todas as redes que ataques as Instituições e seus membros seriam realizados – como também ignorou todos os apelos das autoridades para a realização de um plano de segurança semelhante aos realizados nos últimos dois anos em 7 de setembro, em especial, com a proibição de ingresso na esplanada dos Ministérios pelos criminosos terroristas; tendo liberado o amplo acesso.
Absolutamente nada justifica e existência de acampamentos cheios de terroristas, patrocinados por diversos financiadores e com a complacência de autoridades civis e militares em total subversão ao necessário respeito à Constituição Federal.
Absolutamente nada justifica a omissão e conivência do Secretário de Segurança Pública e do Governador do Distrito Federal com criminosos que, previamente, anunciaram que praticariam atos violentos contra os Poderes constituídos.
De sua parte, também acertadamente, o Presidente Lula decretou intervenção federal na segurança pública do DF. Medida constitucional, legítima e necessária que se impôs.
Sustento ainda que, a prisão preventiva de Anderson Torres e a abertura de processos por crimes contra o Estado Democrático de Direito e de responsabilidade eventualmente cometidos pelo Governador Ibaneis Rocha trata-se de uma exigência democrática. Algo que, no caso dos crimes de responsabilidade, demandará a mais ampla mobilização e vigilância da sociedade, haja vista a base de apoio que o Governante conta na Câmara Distrital.
Estejamos todos, todes e todas atentas e fortes! Muito ainda nos toca fazer até que o processo democrático tome rumo sem novos obstáculos.
Contudo, também estejamos certas e certos de que, se eles derrubam, nós reconstruímos. Eis nossa sina na luta pela democracia nesta nossa Latino-américa.
Ainda é tempo de ninguém soltar a mão de ninguém…
Sigamos!
DEMOCRACIA SEMPRE! NÃO PASSARÃO!
[1] Vale transcrever aqui que, desde o advento da Lei 14.197/2021, são crimes contra as instituições democrática 1) a “Abolição violenta do Estado Democrático de Direito” consistente em “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” apenado com reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência (Art. 359-L.); e 2) Golpe de Estado cuja conduta é Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído, com pena também de reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência (Art. 359-M.).