Lá se foi o primeiro Carnaval pós-derrocada eleitoral do bolsonarismo. Quiséramos nós, contudo, que também nas urnas tivesse sido possível exterminar, dentre tantos outros males intrínsecos ao fascismo, também a misoginia e a transfobia. Mas, sabemos que não é tão simples assim.

Como, infelizmente, chegou ao conhecimento público, na noite do último domingo (19/02) a jornalista Sara Wagner York, foi vítima de agressões perpetradas por servidores da segurança da prefeitura de São Pedro da Aldeia (RJ). Em suas exatas palavras, conforme denúncia feita por ela em uma rede social (e já transcrita em boletim de ocorrência policial), os fatos seriam os seguintes:

“Durante os dias de carnaval eu sempre me divirto muito, eu faço em nome de todas as travestis que não tiveram a mesma possibilidade de estarem nos espaços de socialização nos quais hoje posso desfrutar. Na noite do dia 19 de fevereiro de 2023, por volta de 11h00, eu me dirigia até a área reservada pela prefeitura municipal de São Pedro da Aldeia para fazer a famosa fotografia panorâmica comemorativa do carnaval (como fizemos tantas vezes em outros anos, quando o prefeito em gestão não era Bolsonarista) na cidade onde moro e contribuo de forma pontual com todas as minhas obrigações. Ou seja, sou cidadã moradora do centro da cidade e honro com todas as minhas obrigações cotidianamente. Após me dirigir a portaria e receber autorização para entrar ao espaço subi até a área reservada e cumprimentei o prefeito de São Pedro da aldeia. o Sr. @fabiodopastel e na sequência me dirigi até o espaço ao qual faria o registro fotográfico do evento. Ao entrar na área reservada e assim que cumprimentei o prefeito, percebi que o secretário adjunto de turismo (não sei que nome, mas tenho vários áudios e imagens) chamava a equipe de seguranças para retirar alguém daquele espaço, até aquele momento não imaginava que esse alguém seria eu. Alegando que eu estava sem autorização para estar naquele espaço, o que não é verdade, pois já havia o feito. Os seguranças passaram a me enforcar e tomaram o celular que estava na mão do assessor que me acompanhava, mesmo sem apresentar qualquer forma de resistência”.

Para quem não a conhece, Sara Wagner York é graduada em Letras – Inglês (UNESA), em Pedagogia (UERJ) e em Vernáculas (UNESA). É especialista em Gênero e Sexualidades (IMS/CLAM/UERJ). Mestra em Educação (UERJ) e doutoranda em Formação de Professoras/es (UERJ). É âncora de vários programas da TV 247. E é pai, avó, pesquisadora e professora, a travesti da/na Educação.

Ler seu relato sobre a violência de gênero sofrida e, acima de tudo, assistir às cenas em que ela é retirada à força por seguranças da Prefeitura, me foi aterrador. Razão pela qual este artigo, em primeiro lugar, vem em solidariedade à ela e em repúdio à ação do Poder Municipal. Mas, também, em segundo plano, este texto é um convite a todas, todos e todes para que façamos um diálogo conjunto e aberto sobre o sentido político de nossas notas públicas – sejam elas de solidariedade ou repúdio – enquanto organizações e movimentos.   

Estamos atravessando um tempo em que o sentimento de impotência nos fez acreditar que poderíamos guardar nossas palavras, pois estas seriam pouco (muito pouco) ante as mais absurdas atrocidades. Daí porque, não raro, ao tomar conhecimento de fatos que nos tomam de indignação, geralmente sobram companheiras e companheiros a dizer já estarem fartas e fartos de “simples” notas, sustentando que as mesmas não teriam qualquer efeito e que o melhor são ações práticas em favor das vítimas.

Como jurista que pesquisa e escreve sempre imbuída do desejo de que o Direito cumpra seu papel enquanto instrumento de transformação social; e, também, como advogada cujas causas patrocinadas vão no sentido de friccionar o sistema de justiça em direção a outros paradigmas decisórios que não os cis-hetero-brancos-eurocentrados, entendo que atitudes concretas são – e devem ser – parte de nosso protocolo ativista. Todavia, nada nos pode fazer desconsiderar o peso e importância de nossas palavras.  

Nada pode ser mais sufocante do que calar ante uma injustiça. Contudo, nada é mais violento do que, sob qualquer pretexto, se permitir calar quando a injustiça ao longo dos tempos sempre foi objeto de silêncio.

O silêncio ensurdecedor de grupos “que se dizem” feministas a partir de um absurdo e obsoleto dogma biológico de feminino tem sido a regra quando os corpos indesejados, feridos e exterminados são de mulheres trans e travestis. Contudo, de parte de muitas de nós outras, também formas de apoio não públicas precisam ser problematizadas para que aprofundemos em muito reflexões e lutas em aliança com as organizações e movimentos mulheres trans e travestis. Não basta ser não ser transfóbico ou transfóbica, é preciso ser anti-transfóbica ou anti-transfóbico.

Assim como o feminismo negro provocou (e ainda está a provocar) sensíveis e visíveis inflexões entre as feministas, sindicalistas, ambientalistas e por aí afora, também o movimento de mulheres trans e travestis (em teoria e práxis) tem muito a nos ensinar. Acredito piamente que “sem travesti não há revolução”. 

Sara é mais uma vítima da violência política sexista, patriarcal, machista sobre as quais tanto falamos e tanto combatemos. Mas, faz parte de um grupo contra o qual também o silencio sempre foi mais uma forma de agressão. Daí porque, ao meu ver, meditar conjuntamente sobre o sentido de notas de apoio ou de repúdio e concluir (como estou a propor) que elas continuam a ser um imprescindível instrumento de luta política é fundamental. 

Externar nossas indignações não são palavras ao vento. São compromissos políticos que assumimos. Manifestemo-nos.Quiçá, com a devida licença literária, Clarice Lispector possa nos iluminar para que não percamos o sentido político de nossas manifestações públicas de apoio e/ou rechaço. Dizia ela em um de seus antológicos pensamentos que “… não se guarda as palavras, ou você as fala, ou as escreve, ou elas te sufocam.” Não guardemos as nossas.

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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