Além do nosso umbigo existe gente com fome
Esta semana, chamou a minha atenção a notícia de haver uma quantidade absurda de interessados em alugar residências em Botucatu, no interior de São Paulo. Nada contra a cidade, que fique claro. Mas o motivo para essa corrida é o pensamento, ainda equivocado, de muitos brasileiros de que é possível pegar atalhos para realizar seus desejos – independentemente de causar prejuízo a alguém.
Na verdade, a cidade foi escolhida para ter a sua população vacinada em massa, como parte do estudo desenvolvido pelo laboratório AstraZeneca. Houve até mesmo quem se dispusesse a pagar aluguéis de vários meses de forma retroativa, burlando regras e as condições impostas pela prefeitura justamente para afastar quem está apenas interessado em se imunizar e furar a fila.
Esse comportamento nos mostra o quanto ainda tem gente disposta a tirar vantagem das situações. À medida que agem assim, essas pessoas esquecem de olhar o outro. Sim, é verdade que a pandemia escancarou as diferenças sociais, mas também expôs o caráter.
Já chegamos a 417 mil mortos e, neste fim de semana, com certeza ultrapassaremos 420 mil. Começamos a computar vítimas fatais de Covid-19 como quem conta banalidades ou histórias, a exemplo da personagem Sherazade, do livro “Mil e uma noites”.
Para evitar que continuássemos conduzindo nossas vidas alheios a tudo o que ocorre à nossa volta, esta semana a morte do humorista Paulo Gustavo causou impacto e parece ter despertado para o número real que aumenta a cada dia, pondo fim a histórias, sonhos, projetos. São pessoas, eu insisto, não são números. Entre esses brasileiros há, sem dúvida, os que foram alcançados pela doença porque tiveram que se expor nas ruas em busca de trabalho ou de comida!
O Brasil segue batendo recordes de mortes, mas as pessoas ainda esperam pela vacina que pode levar nossa vida de volta à relativa normalidade e, enquanto esperam, também clamam por ajuda. Pesquisa feita pela Central Única das Favelas (Cufa), em 76 comunidades, revelou que 68% dos moradores estão sem dinheiro para comprar comida.
Nas favelas, o desemprego é o grande culpado pela falta de alimentos. Se pensarmos que no Brasil há mais de 13 mil favelas, segundo o IBGE, fica fácil calcular quantos brasileiros estão nessa situação, não?
Passou da hora de tirarmos o foco das nossas questões pessoais e do nosso próprio umbigo.
A pandemia trouxe alguns aprendizados, um deles é de que não é possível pensar exclusivamente em como se dar bem em alguma coisa se as pessoas estão morrendo de Covid-19 quando há vacina disponível no mundo e quando vão, em breve, talvez vão começar a morrer de fome também aqui, do nosso lado, no nosso país.
É hora de tomar atitudes e cobrar os políticos eleitos para que se posicionem e não fiquem apenas sob a mira de um governo inepto e extremamente egoísta. O presidente brinca de administrar um país como garoto mimado e egocêntrico, que tenta minimizar impactos de uma doença devastadora e que está fazendo este país retroceder décadas na proteção e na assistência à saúde e à vida.
Enquanto ele se diverte sadicamente, apenas 39,1 milhões de pessoas receberam o auxílio emergencial deste ano, segundo projeções. No ano passado, foram contempladas 68 milhões e estima-se que mais de 70 milhões precisem hoje de uma renda básica emergencial digna para garantir sua sobrevivência. Quem dirá os que não foram contemplados que não terão acesso nem ao básico?
Paola Carvalho é diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, uma das 300 organizações responsáveis pela campanha #auxílioateofimdapandemia