Há mais de um ano, travo uma luta diária pela implantação, por meio da Rede Brasileira de Renda Básica, do auxílio emergencial. Junto com outras 300 organizações sociais conseguimos pressionar parlamentares, pautar e aprovar o auxílio que beneficiou mais de 68 milhões de pessoas no ano passado, injetando recursos na economia e nos negócios locais. 

Neste período, tornei-me a interlocutora desse programa, pois, por meio das redes sociais, esclareci dúvidas e ajudei pessoas a lutarem por seus direitos. Sou conhecida como Paola. Simplesmente assim. Sem sobrenome, sem cargo, sem outra identidade que não seja o programa renda básica ou o auxílio emergencial. Também durante este tempo, minha caixa de mensagens ficou repleta de todo tipo de dúvida e de pedido de socorro. 

Uma das mais impactantes chegou esta semana e dizia: “… Te acompanho há bastante tempo. Tô desistindo, desestimulada. Minha vida já anda ruim demais para passar por essa covardia desse desgoverno.”  

Foi esse o desabafo de uma beneficiária do Rio de Janeiro que precisa do auxílio, mas ficou de fora da nova rodada por conta do teto de gastos de R$ 44 bilhões, que reduziu a quantidade de beneficiários de 68,2 milhões para 45,6 milhões.

Outra, insistentemente ignorada, é Tânia. Dada como morta no ano passado, só conseguiu receber após cinco meses de luta e quando seu caso ganhou as manchetes dos jornais. Tânia está fora da rodada deste ano, embora cuide do filho, esteja desempregada e more com amigos “de favor”. Ou seja: não está entre os selecionados, embora reúna todas as condições que a tornam apta a receber o auxílio emergencial.

Esses dois casos resumem e representam milhares de outros que se repetem dia a dia nas redes sociais e nos fazem questionar o motivo para impor um corte de gastos capaz de excluir mais de 22 milhões de pessoas do auxílio emergencial. Para agravar a situação, o Programa Bolsa Família vai reduzir praticamente à metade a quantidade de beneficiários — de 19 milhões, em 2020, para apenas 10 milhões este ano.

Vidas, sonhos, esperanças são cortadas para caber nas regras do governo, mesmo que isso signifique condenar as pessoas à miséria e à exclusão. Como selecionar quem, entre os mais pobres e miseráveis, deve ser condenado a uma vida de fome e muito mais sacrifício?

Os índices falam por si sós. Até o final do mês de abril, bateremos o recorde de mortes por Covid-19, chegando a 400 mil vidas perdidas. Além disso, temos 19 milhões de brasileiros em situação de fome e 117 milhões em insegurança alimentar. 

Para agravar a situação e afastar a perspectiva de retomar a vida no “novo normal”, a vacina parece um sonho distante para quem precisa sair de casa e ganhar o pão diário. Como escolher a vida se a fome atravessa a porta, sem pedir licença para entrar? 

Não temos nem perspectiva séria de compra de vacinas que traga algum alívio. Enquanto os governos de outros países se esforçam para proteger sua população — com uma renda decente e com vacina, como no caso dos Estados Unidos , por aqui, o Orçamento da União, mais enxuto, prevê neste ano um corte drástico no Ministério da Saúde, propondo 136,3 bilhões para os gastos (em 2020 foi de 160 bilhões). Estamos em plena pandemia e os cientistas, por sua vez, já acenam com uma terceira onda que pode devastar ainda mais este país em junho. 

Neste cenário, é impossível não compreender o pedido de socorro dessa beneficiária do Rio de Janeiro e a sua desesperança. Como acreditar se o que acompanhamos no governo é uma sucessão de equívocos, para não dizer maldades?

A pandemia escancarou as diferenças e os abismos sociais do Brasil, sim, mas não podemos ficar indiferentes a esses índices de fome nem à falta de perspectivas para a aquisição de vacinas. Mais uma vez, a sociedade precisa se unir para reivindicar seus direitos. 

Não é mais possível apenas viver de doações, acompanhando indiferentes os índices de mortalidade por Covid-19 subirem e olhar para os dados da fome como quem apenas observa números. 

Nos dois casos, são vidas perdidas, sonhos destruídos, infâncias roubadas. E olha que não estou nem falando da quantidade de pessoas com sequelas que vai restar para o já desgastado sistema Único de Saúde quando tudo isso passar. Afinal, esse vírus, ainda pouco conhecido da ciência, deixa marcas em quem consegue sobreviver a ele. 

A total inoperância, inabilidade e falta de empatia com o povo brasileiro não deixa dúvidas quanto ao caráter obscuro desse governo. A pressão é justa, necessária, urgente. Somente com comprometimento e apoio da sociedade conseguiremos pressionar parlamentares para exigirem respostas e, mais do que isso, ações para reverter esse quadro que tende a se agravar muito nos próximos meses. 

*Paola Carvalho é diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, uma das 300 organizações responsáveis pela campanha #auxílioatéofimdapandemia 

 

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  • Paola Carvalho

    Assistente social, especialista em Gestão de Políticas Públicas na perspectiva de gênero e promoção da igualdade racial,...

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