Alvo dos ataques do ex-deputado Roberto Jefferson, a Ministra Cármen Lúcia manifestou-se publicamente sobre os episódios nesta última quarta-feira (26/10), durante a sessão plenária do Supremo Tribunal Federal.

 Eloquente e elegante, como lhe é próprio, em meio a referências à Cecília Meireles, ela classificou as injúrias de baixíssimo calão de seu agressor como “agruras que vão além de qualquer civilidade”.

Incisiva e tenaz, característica de sua postura como juíza de nossa mais alta Corte, reafirmou a missão do STF como “um tribunal, de um país, de um povo, a lutar para fazer cumprir a Constituição”, dizendo não ser essa uma tarefa fácil, “menos ainda em horas de tentativa de subversão ou erosão democrática”.

E, por fim, insípida, incolor e inodora, como lhe é peculiar em relação ao que a ela quiçá seja tão somente uma “pauta feminista”, nada referiu sobre o viés misógino da violência perpetrada pelo aliado do Presidente da República Jair Bolsonaro.

Ignorar ou rechaçar a perspectiva de gênero não foi nenhuma surpresa no pronunciamento da Ministra. E, felizmente, em sentido oposto a seu silêncio (também eloquente!), a “Nota à sociedade brasileira”, firmada pela Ministra Rosa Weber, atual presidenta da Corte, não tergiversou sobre esse aspecto.

Pelo contrário, segundo o que nela se lê, está claríssimo para o Supremo Tribunal Federal a necessidade de “veemente repúdio à agressão sórdida e vil, expressão da mais repulsiva misoginia, de que foi vítima a Ministra Cármen Lúcia em função de sua atuação jurisdicional, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral”. Sublinhei propositadamente a locução adjetiva “expressão da mais repulsiva misoginia”, pois penso ser este o fio condutor da análise que devemos fazer para compreender a tentativa golpista de provocar comoção e revolta social protagonizada por Roberto Jefferson.

De tropa de choque de Collor de Mello a defensor feroz de Bolsonaro, o ex-deputado, mesmo nos momentos em que esteve atrás das grades, sempre demonstrou sua notável habilidade de manter-se como figura fundamental da política brasileira. Característica essa complementada pela inegável capacidade performática que exibe desde o nauseante “O Povo na TV” na década de 80 e que fez desfilar em seus memoráveis debates com José Dirceu na CPI do Mensalão, no final dos anos 2000.

Contudo, nesse mix de ator canastrão e político corrupto que é, talvez não seria em outro momento, senão a última semana de uma eleição em que retomada ou o total abandono do projeto democrático se digladiam, o tempo e o lugar nos quais Bob Jeff encontraria o melhor dos palcos e a mais promissora janela de oportunidades políticas de sua longa e putrefata carreira.  

Roberto Jefferson não proferiu xingamentos que aleatoriamente lhe vieram à mente contra uma integrante do STF. Tampouco, circunstancialmente escolheu na lista de nomes que compõem o Tribunal uma integrante mulher. Na verdade, os ataques verbais perpetrados por ele não poderiam ser substituídos por outros usados em contextos diferentes e/ou contra homens.

Fomentar e incentivar a “cultura do inimigo” identificados como indivíduos ou grupos que devem ser odiados e exterminados é parte essencial em qualquer projeto autoritário de poder. Por isso que, na peça teatral bolsonarista na qual Jefferson passou a interpretar o personagem de “guerreiro que nunca se rende”, escolher Cármen Lúcia como alvo e ataca-la com xingamentos que buscam no imaginário coletivo a repulsa àquelas que são consideradas pelo “cidadão de bem patriarca da tradicional família brasileira” a escória dentre as mulheres, como são as prostitutas, não é à toa.

Muito além de ser de ser uma ofensa à Ministra como pessoa, como mulher ou como ministra – e até, digo mais, para além de ser também uma afronta ao Tribunal, enquanto engrenagem republicana – a escolha política pela narrativa misógina é gravíssima na medida em que o objetivo final é a destruição de qualquer possibilidade de que o projeto democrático que todas e todos, nas mais diferentes trincheiras, buscamos defender nestes últimos anos, volte aos trilhos.

Performando, o que Roberto Jefferson fez foi lançar mão de recursos retóricos destinados não a uma mulher, mesmo que seja ela Ministra da Suprema Corte. O conteúdo misógino do script de Jeff foi uma opção política de uma gravidade que a Ministra não conseguiu alcançar. Lamentavelmente ela preferiu calar-se, como se salientar ou não a natureza misógina dos ataques estivesse ao dispor de suas idiossincrasias e concepções sobre o que é “ser mulher” e não fosse, como é, uma exigência democrática.

Não são poucos os registros históricos, remotos e contemporâneos, exemplificativos de que em sistemas autoritários, autocráticos e/ou fascistas é conditio sine qua non o despontar da misoginia enquanto a pior das mais perversas faces do patriarcado. Mulheres livres, pensantes e atuantes são a base para qualquer construção democrática. E, por óbvio, são também uma ameaça a qualquer sistema fora desse espectro.

Sublinhar o cunho misógino de toda as espécies de violência contra as brasileiras, em especial contra as que exercem altos cargos de poder, como vem ocorrendo de 2016 para cá, e jogar os holofotes sobre a predominância que esta característica vem tomando desde a institucionalização do fascismo em 2019, não é questão de menos importância ou mero preciosismo de “patrulhas” feministas. Ledo engano daqueles e daquelas que assim pensam e sobre isso silenciam em suas manifestações públicas.

(Re)conhecer o caráter estrutural do patriarcado que, em tempos como os que vivemos, transpira misoginia como sua arma mais letal contra qualquer sistema democrático não é um ato discricionário ou mera disposição de vontade de quem dá as costas ao feminismo. É um dever de quem exerce a função republicana de ser uma das guardiãs da Constituição.

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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