Nesta semana, muitas de nós, mulheres, estamos horrorizadas com a narrativa meticulosa do assédio sexual que sofreu Dani Calabresa. Muitas de nós acessaram a leitura no corpo. Eu fui uma delas. A cada detalhe dos toques abusivos, das frases violentas “Eu não tenho culpa do que aconteceu! Quem mandou você estar muito gostosa?”, da descredibilidade generalizada, das reuniões de 4 horas para tentar ser ouvida, do medo da demissão, um sentimento doloroso invadia. Uma raiva localizada. Um nó no estômago que só quem “aprendeu a ter medo no leite da mãe”, como coloca belamente Audre Lorde na poesia “Uma ladainha pela Sobrevivência”, poderia sentir.

De lá pra cá, alguns chamamentos de mais empatia para os homens possíveis parceiros foram mobilizados na internet. Na narrativa, também fica claro como a validação de homens foi fundamental para que a denúncia de Dani Calabresa tivesse credibilidade. A solidariedade dos homens com a violência da oprimida foi tática para que a denúncia avançasse. E é nisso, a empatia e a solidariedade dos homens possíveis parceiros, que quero me ater.

Honestamente, eu acredito que os homens possam ter empatia pelas mulheres. Mas, também muito honestamente, acredito que este caminho é longo, árduo e conflituoso para eles. Retomo Lorde, “e quando falamos nós temos medo, nossas palavras não serão ouvidas, nem bem-vindas, mas quando estamos em silêncio, nós ainda temos medo”. O medo como registro ancestral acompanha as mulheres. Nós nascemos num mundo espinhoso para nós, numa sociedade reproduzida na violência, no estupro, no sequestro de nossos corpos. Se é no nosso corpo que essa dor é há séculos sentida, reproduzida e vivida, não sinto que a melhor tática para nós, mulheres, seja demandar empatia dos homens heterossexuais e cisgêneros – mesmo aqueles mais sensíveis à causa. Fora algumas exceções, casos de homens que infelizmente sofreram assédio ainda crianças, o corpo desses homens desconhece a dor do medo de existir por sua condição de gênero. Muitos deles não conseguem ainda enxergar os efeitos desastrosos das opressões estruturais advindas do heteropatriarcado em suas relações cotidianas. Muitos deles, nossos parceiros e companheiros em outras lutas, não compreendem como eles se autojulgando “tão bons” ainda assim são copartícipes das estruturas de opressão que violentam “suas” mulheres, filhas, mães, amigas, colegas de trabalho.

Uma sociedade baseada na hierarquia de gênero, de afetos e de cuidados, na qual o homem tem nas mãos o monopólio da violência (principalmente o branco, heterossexual e cisgênero), é perversa materialmente e subjetivamente em seus efeitos, inclusive naqueles que estão eticamente comprometidos com a mudança. 

Minha sugestão é que esqueçamos a empatia, momentaneamente, embora ela seja importante. A jornada para que esses homens, e aqui estou falando sobre aqueles com os quais sinto que nós, mulheres, podemos acreditar na potência pedagógica do diálogo, consigam se colocar em nossos lugares talvez nunca se conclua. Afinal, somos nós que trazemos desde meninas marcadas em nossos corpos, visíveis ou não, as violências de existir mulher nesta sociedade heteropatriarcal, capitalista e racista. 

Minha outra sugestão é que foquemos em demandar de nossos parceiros um posicionamento ético com a legitimidade das nossas narrativas, através da educação da mente. Sei dos efeitos históricos de uma determinada racionalidade que se pretende neutra, mas que acaba sendo base para o sistema que nos violenta e cala. A separação entre razão e emoção é potente instrumento do heteropatriarcado. Mas, desacreditada que seja a empatia melhor tática e acreditando que é preciso esperançar – também com aqueles que apresentam desejo de libertação e justiça social, apelo ao posicionamento ético de legitimar as narrativas dos corpos historicamente silenciados. Uma educação da mente, para que mude o paradigma da razão. Ao invés de, quase imediatamente, questionar a narrativa das mulheres, que os homens façam um esforço cognitivo e escolham escutá-las, assumindo seu lugar de privilégio de gênero e os desafios para uma transformação dos regimes de afeto. A solidariedade não virá mais pela capacidade de se colocar no lugar, compreender a dor. Que não passe mais pela empatia a solidariedade com a comunidade de oprimidas, se a empatia surge mais como um exercício de abstração do “eu” do que como uma possibilidade concreta de sentir no corpo a dor das mulheres, de se colocar no lugar. A solidariedade que nós, mulheres, precisamos é aquela que, sabendo sua posição privilegiada de topo da cadeia hierárquica heteropatriarcal, os homens – possíveis parceiros comprometidos com a transformação do mundo – sejam capazes de assumir um posicionamento ético que colabore na legitimação das narrativas de assédio sexual, de tal forma que sustente também a credibilidade delas. Independente da possibilidade concreta de sentir ou compreender as marcas sentidas no corpo daquelas cujo instante de glória é a certeza que “não esperavam que sobrevivêssemos”, retomando o poema de Audre Lorde. Quem sabe assumindo este compromisso ético, de tanto ouvir e legitimar as experiências vividas pelos corpos das mulheres, a empatia algum dia surja. Já a decisão de se solidarizar não pode esperar por ela.

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  • Inara Fonseca

    Jornalista, pesquisadora e educadora. Doutora (2019) e mestra (2012) em Estudos de Cultura, pela Universidade Federal de...

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