Keron Ravach de 13 anos, assassinada em 4 de janeiro deste ano, em pleno mês da visibilidade trans, em Camocim, no interior do Ceará, fazia performances ao som de Anitta e Pabllo Vittar e queria ser influenciadora digital. Foi morta com socos, pedradas, pauladas, facadas, teve os olhos perfurados e a roupa introduzida no ânus. A crueldade deste crime é típica dos assassinatos de mulheres trans e travestis no Brasil.

Neste 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, não há o que comemorar. Pelo 13º ano consecutivo, o Brasil ocupa o topo do ranking de assassinato de pessoas trans. O mesmo país que figura novamente como o que mais consome pornografia trans nas plataformas de conteúdo adulto. Os dados sobre morte de pessoas trans em 2020 são alarmantes, como denuncia a Antra (Associação Nacional de Travestis e transexuais) no “Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020”, em parceria com o IBTE ( Instituto Brasileiro Trans de Educação). Foram mapeados ao menos 175 assassinatos pela organização, todos contra travestis e mulheres trans, um número 70% maior do que em 2019 (124). Quase 80% das vítimas foram identificadas como pessoas negras (pretas e pardas). “Não foram encontradas notícias/evidências sobre o assassinato de homens trans/transmasculinos esse ano, apesar da iminente subnotificação que pode ter favorecido com que esses dados não se tornassem públicos”, informam.

De acordo com a organização, o número de vítimas do gênero feminino é maior que em 2017, ano em que o País bateu recorde no número de homicídios de sua história, de acordo com o Atlas da Violência, e o maior número desde que foi iniciada a pesquisa. Em números absolutos, São Paulo foi o estado que mais matou a população trans em 2020, seguido do Ceará, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que apresentaram aumento no número de casos em relação a 2019.

Foto: Capa do Dossiê

“Em 2020, a necro-Trans-política seguiu em pleno funcionamento, se consolidando como o ano com mais assassinatos de travestis e mulheres trans desde o início desse tipo de levantamento de dados no país. Apesar de uma perceptível mudança na forma com que geralmente a mídia trata pessoas trans nas notícias sobre assassinato, ainda são recorrentes os casos em que se reproduz de forma transfóbica o apagamento da identidade de gênero das vítimas. E se mantem a falta de dados sobre o perfil dos suspeitos, no mesmo momento em que os nomes de registro das vítimas são expostos, sem menção a seus nomes sociais”, destacam.

O esforço dessas organizações em levantar os dados faz frente à omissão e falta de transparência estatal na coleta dessas informações. “Seguimos vendo a insistente política estatal de subnotificação da violência lgbtifóbica, mesmo após o reconhecimento do STF da violência motivada por orientação sexual e/ou identidade de gênero como crime. Os estados insistem em não levantar os dados sobre violência contra a população LGBTI+, em especial os assassinatos. Precisamos fazer uma discussão séria e aprofundada sobre o que significa um inquérito de um crime onde a identidade de gênero da pessoa foi determinante para que ela fosse assassinada. Na maioria dos casos a polícia termina a investigação afirmando que não foi crime de ódio o motivo torpe do assassinato”, explicam.

A crueldade transfóbica em dados

Novamente a maior concentração dos assassinatos foi registrada na região nordeste, com 43% dos casos. Quanto a idade, 56% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos. Sendo que a idade média das vítimas dos assassinatos foi de 29,5 anos e a mais jovem tinha apenas 15 anos de idade. O levantamento identificou que 65% dos assassinatos foram direcionados aquelas que atuavam enquanto profissionais do sexo e 71% deles aconteceu em locais públicos.

Cerca de 50% dos assassinatos foram cometidos por armas de fogo e em 77% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade, em cerca de 72% dos assassinos não tinham relação direta com a vítima. Houve diversos períodos de aumento consecutivos dos números de assassinato, mesmo durante a pandemia que assola o mundo e nos períodos em que as regras de distanciamento eram mais rígidas. Mesmo assim, as travestis e mulheres trans seguiram tendo que continuar o trabalho na prostituição pela dificuldade e/ou ausência de políticas para enfrentar os impactos da crise sanitária da Covid-19 na vida das pessoas trans. Foram mapeados casos de pessoas trans mortas pela covid em contraposição aos boletins de saúde que não apresentam marcadores de identidade de gênero.

São as travestis/mulheres trans as que tem a vida mais precarizada, que mais cometem suicídio, conforme a Antra. A piora na saúde mental e o aumento no número de suicídios afetaram diretamente essa população. A organização destaca ainda o aumento nas diversas tentativas de assassinato, violações de direitos humanos e recorrentes casos de “transfobia recreativa” denunciadas ao longo do ano, especialmente vindas do meio sertanejo, “que se consagra com um dos mais transfóbicos dentre a classe artística”.

O dossiê identificou o assassinato de defensoras de direitos humanos entre as vítimas de 2020. “Mesmo com o aumento de pessoas trans eleitas na última eleição, vemos muitas delas, todas mulheres e a maioria negras, serem ameaçadas e enfrentarem processos violentos de transfobia direta e ameaças no ambiente virtual, e fora dele. Algumas delas estão tendo que mudar completamente suas rotinas, e correndo o risco de terem comprometidas as suas atuações para os cargos que foram eleitas. As redes sociais têm se tornado um ambiente extremamente hostil e violento para minorias, e veremos como se comportam os grupos de ódio que tem se organizado nas plataformas digitais, que de certa forma tem sido coniventes com essa violência ao não punir corretamente os suspeitos.

A pesquisa apresenta dados sobre a violência e o assassinato contra travestis, mulheres e homens trans, pessoas transmasculinas e demais pessoas trans brasileiras, e um panorama ampliado sobre os impactos das transfobias no cenário marcado por retrocesso nas políticas de gênero e de direitos humanos, falta de ações pró LGBTI e ataques de membros do governo contra pessoas LGBTI+, inclusive na esfera internacional. “Os dados produzidos em parceria com o IBTE, representam um marco na luta antitransfobia, em especial a letal, no país e no mundo, tendo sido traduzido e acessado em mais de 30 países”, informam.

O relatório traz artigos sobre as questões que envolvem essas violências de forma a levantar a discussão sobre a responsabilidade das pessoas cisgenêras, além da urgência de serem traçadas políticas a fim de enfrentar os altos índices de assassinato.

Gisberta Salce, travesti brasileira migrante que foi assassinada de forma cruel e desumana em Portugal, tendo se tornando um marco na luta contra a violência transfóbica naquele país é lembrado no documento. “Hoje, 15 anos depois, vemos o Brasil fechar os olhos para as constantes denúncias das instituições – e do mundo, desonrando sua memória e reafirmando o seu lugar como aquele que naturalizou o processo de precarização e morte das pessoas trans”.

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