No Dia do Orgulho, a atriz relembra sua transição e denuncia a violação de seu direito à educação, exigindo respeito: “Precisamos acabar com esse ciclo violento”

Prestes a completar 24 anos, a atriz Anne Mota, protagonista de Alice Júnior, se tornou um ícone de representatividade para crianças, adolescentes e jovens transgênero. O filme acompanha o cotidiano escolar de uma garota trans nordestina, dos ataques transfóbicos à criação de laços afetivos, totalmente sem transfake. 

Em entrevista ao Portal Catarinas, Anne conta que são muitos os seus pontos de intersecção com a personagem e relembra seu próprio processo de saída do armário, ainda na infância, marcado pela anulação: “Eu nunca pude ser homem, eu nunca pude ser mulher. Eu não era ninguém.”

A atriz denuncia a violação sistemática de seu direito à educação na adolescência e pede justiça: “Precisamos acabar com esse ciclo violento de sermos expulsas de casa, depois da escola e irmos pra rua”. Confira a entrevista na íntegra.

Catarinas: Quando a arte entrou na sua vida?

Anne Mota: Eu comecei a fazer o curso de iniciação ao teatro no SESC Santo Amaro, em Recife, um semestre antes de interpretar Alice Júnior. Eu sempre quis ser atriz, cantora, dançarina… Sempre quis ser artista! Cheguei a procurar uma agência de modelos e ouvi que não tinha altura pra ser modelo, mas tinha perfil pra estrela de cinema, rs.

Dito e feito! Como a equipe do filme chegou até você?

A seleção foi em 2016. Eles estavam procurando atrizes trans que fossem menores de idade, algo em torno de 14, 15 anos, e que fossem de São Paulo, Rio de Janeiro, ali pelo Sul, Sudeste. Eu sou de Recife e na época tinha 17 anos, mas me inscrevi mesmo assim. E aí eles retornaram, pediram pra eu gravar um trecho do roteiro e mandar de volta pra eles. Gravei, mandei de volta e eles gostaram muito de mim. No meio de 2016 eu soube que eu seria Alice Júnior, até então nunca tinha feito teatro. Corri atrás de cursos, fiz quatro preparações de elenco e comecei a gravar um ano depois, mas o filme só foi lançado em 2019 nos festivais de cinema, a gente rodou o Brasil e rodou fora também. Em 2020 entrou no catálogo da Netflix. 

Além de oferecer representatividade, Alice Júnior é um filme muito acessível. Concorda?

Total. Desde o nascimento do cinema, existe o transfake, mas quando a gente começa a ocupar esse espaço, as pessoas passam a perceber que existimos e merecemos respeito. A audiência não é composta só de pessoas cisgêneras, existem pessoas trans consumindo audiovisual. A gente também quer se ver. Alice Júnior mostra que o adolescente trans existe. Eu fui uma criança e depois uma adolescente trans que passou por situações muito similares às da personagem. É por isso que alguns feedbacks sobre o filme me emocionam tanto. Gosto de saber das famílias que assistem juntas, porque é um filme familiar. Gosto de saber dos professores que assistem e levam pra discussão em sala de aula. Gosto de saber das meninas trans que se inspiram na Alice e até começam a sonhar em ser atrizes.

Como foi a sua infância? 

Os meus pais se separaram quando eu tinha 3 anos. Nessa época eu já dava sinais de que seria Anne. Eu passava o batom da minha mãe. Eu botava o salto da minha mãe. Eu usava a roupa da minha mãe. Uma hora eu comecei a dizer que era a Mia do RBD (risos). Eu sou viciada em RBD, acompanho desde sempre e amo a Anahi, que interpreta a Mia – inclusive, o meu nome é inspirado nela. 

É mesmo?

Sim, o apelido dela é Any. Eu deixei Anne pra ficar mais original (risos).

Os seus pais perceberam que você era uma criança trans?

Eu me assumi com 12 anos e a minha mãe ficou muito confusa. Ela sempre diz que fui a primeira pessoa trans que ela conheceu. Até então, ela tinha certeza de que eu era um garoto gay, então o mundo dela desabou, mas ela sempre ficou do meu lado. 

E você, quando viu uma pessoa trans pela primeira vez? 

Em um documentário chamado My Secret Self, que é sobre crianças trans. Eu estava navegando no YouTube e ele apareceu nos relacionados. Eu não lembro o que estava assistindo, mas sei que não tinha nada a ver com transgeneridade. Eu cliquei pra assistir e me vi naquelas crianças. Até aquele momento eu me sentia completamente anulada, mas crianças trans existem e eu fui uma delas.

Você se sentia em um não-lugar?

Eu nunca tive uma vivência de homem. Uma vez os representantes de turma fizeram uma caixinha de melhorias para a sala de aula e alguém escreveu “expulsar o viadinho”. O viadinho, no caso, era eu. Isso foi na sexta série. Depois fui empurrada escada abaixo com a frase “boiolas vão por último”. Eu sempre tive uma vivência anulada enquanto garoto, e ao mesmo tempo eu não conseguia ser mulher. O discurso das feministas radicais é de que nós, mulheres trans, temos uma vivência masculina até a transição, mas isso é mentira porque somos anuladas. Eu nunca pude ser homem, eu nunca pude ser mulher. Eu não era ninguém. 

Como o seu pai reagiu?

O meu pai se casou novamente. Eu tive contato com a minha meia-irmã até os 3 anos de idade dela, mas quando comecei minha transição nos Estados Unidos, passei quase um ano e meio sem falar com eles. A minha madrasta é uma pessoa bastante preconceituosa. Teve uma vez que ele me chamou pra almoçar e eu vi minha irmã cochichando no ouvido da amiga que esse era o irmão dela que tinha virado mulher. Não sei o que diziam pra ela. Quando o meu pai me atendia no telefone, dizia “fala, macho” mesmo eu já tendo transicionado. É uma fala bem nordestina, né? Só que não vale pra mim porque eu não sou um macho, sou uma mulher. Hoje em dia ele já me respeita enquanto Anne, me chama de filha e isso é muito importante. 

Vocês chegaram a fazer algum acompanhamento profissional nessa época?

Sim, a minha mãe começou a procurar muitos psicólogos. A gente passou por uns bem ruins, que não entendiam nada sobre transgeneridade. Mas a gente também achou um psicólogo muito bom desde cedo, ele me acompanha desde os meus 12 anos até hoje. Provavelmente fui a primeira paciente trans dele, mas ele se dispôs a estudar. A minha mãe foi estudar também, foi participar do Mães pela Diversidade em Recife. Depois de um tempo ela começou a procurar roupas femininas comigo.

Quando nasceu a Anne?

Como eu era uma criança muito interneteira (risos), comecei a participar de comunidades trans no Orkut e a me informar. Assim surgiu a ideia do intercâmbio. Pensei: bom, eu não consigo fazer minha transição no Brasil, eu tenho medo da reação dos meus colegas, eu tenho medo de como vai ser na escola, eu tenho medo de tudo. Então o que é que eu faço? Eu vou pros Estados Unidos que lá ninguém me conhece. Vou começar lá. Um dia, tomei coragem e falei pra minha mãe: eu quero fazer intercâmbio porque eu vou ser quem eu sou nos Estados Unidos. No dia 25 de agosto de 2014, considero que nasci, comecei a ser quem eu sou: Anne. 

Sair do país ajudou?

Antes do intercâmbio você precisa preencher formulários para as famílias interessadas em te receber saberem quem você é. Eu dizia que era um garoto andrógeno, mas quando cheguei lá, tive uma conversa com a família que me acolheu e falei que achava que era trans. Foi um alívio.

Eles te acolheram?

Era um casal gay. Um me acolheu bastante e o outro não. O que me acolheu falou: tá, então qual é o seu nome? E eu falei: Anne. Ele disse: tá bom. O outro era muito transfóbico. Uma vez, na mesa de jantar, ele me perguntou: você vai fazer a cirurgia de mudança de sexo, né? Eu quis saber o porquê da pergunta e ele me disse que homem não gosta de meter só no cu. Gosta de meter na vagina também. Pra uma pessoa de 15 anos de idade foi bem pesado, então eu quis trocar de casa. Primeiro me ofereceram uma família composta por uma mãe cis e um filho trans. Morei com eles por um tempo, mas o problema é que eles não tinham condições de bancar mais uma pessoa e essa era a regra do intercâmbio, então eu tive que voltar pro Brasil antes do tempo previsto. Seriam 10 meses mas fiquei apenas 7 porque não existia mais nenhuma família que aceitasse uma pessoa trans.

A fala desse homem, além de transfóbica, foi monossexista. 

Pois é… Ele não se deu conta de que existem mulheres com pênis. Eu sou uma mulher com pênis e não pretendo fazer a transgenitalização porque estou bem com isso. Eu sou uma mulher com pênis e continuo sendo mulher. Isso não me faz nem menos e nem mais mulher que qualquer outra mulher. E sou uma mulher bissexual. 

Como foi a volta para o Brasil?

Um inferno. Eu estava no segundo ano do ensino médio e tive que procurar uma escola, mas ninguém estava preparado para receber uma garota trans. A gente passou por mil escolas que tinham o discurso da inclusão e no outro dia, quando eu chegava para fazer a matrícula, diziam estar lotadas. Outras escolas falavam que não estavam preparadas para receber garotas trans. Quando eu finalmente me matriculei, a escola me mandou direto pra direção e a diretora me perguntou por que eu não fazia o supletivo, pois não tinham como garantir a minha segurança. Como assim você consegue garantir a segurança de alunos cisgêneros mas não consegue garantir a segurança e respeitar uma aluna trans, sabe?

Você já tinha feito as retificações na sua documentação?

Ainda não, mas queria ser chamada pelo nome social. Hoje em dia eu já sou retificada. Fui atrás dos meus direitos em 2017 e tive que abrir um processo, levar testemunhas para falar que eu era Anne, imprimir meus perfis de redes sociais para mostrar que eu usava o nome Anne na internet, falar pro juiz que eu pretendia fazer a cirurgia de transgenitalização… Antes disso, era a minha mãe que me acompanhava aos lugares e fazia as pessoas respeitarem o meu nome social. 

Você sente que teve o seu direito à educação violado?

Muitas instituições me negaram o acesso à educação básica e isso não pode acontecer. É lei. Eu finalmente consegui encontrar uma escola que respeitou o meu nome social e a minha ida ao banheiro. Ela tinha políticas anti-bullying, mas mesmo assim sofri transfobia. Colocaram uma placa no banheiro avisando: favor entrar só meninas. Eu revolucionei a escola quando iniciei o meu primeiro namoro com um garoto cis. Fui a primeira namorada dele também. A gente andava de mãos dadas, dava selinho e a escola que parecia ser super tranquila ficou com o pé atrás. Nos chamaram na direção e disseram a ele: se vocês não pararem com isso, vamos contar aos seus pais que a sua namorada é trans. Acabei mudando de colégio de novo. No outro colégio, eles tinham debates sobre inclusão, mas quando eu levantava a mão pra falar, nenhum aluno aceitava. Uma hora eu cedi ao supletivo.

Isso aconteceu há seis, sete anos. Você sente que houve algum avanço?

Eu sinto que a sociedade está mais preparada, que esse assunto é mais falado, que temos mais representatividade. Precisamos ocupar os espaços, mas infelizmente ainda temos muitos casos de transfobia nas escolas. Muitas escolas sequer têm aulas de diversidade de gênero e sexual – o que é muito importante. Teve um caso em Recife de duas garotas trans de uma escola pública que foram agredidas fisicamente por estarem na fila feminina da merenda. Temos muito a avançar.

O que você quer daqui pra frente?

Tem novidades vindo por aí, mas ainda não posso contar (risos). Por enquanto, tô fazendo o curso avançado de cinema e TV aqui na escola Wolf Maia, em São Paulo. Quero continuar me profissionalizando como atriz e criando conteúdo pro Instagram. Tenho apostado em vídeos de militância e informativos pra pessoa botar a informação na cabecinha e praticar. Em 30 segundos dá pra aprender muita coisa.

Pode indicar filmes e leituras para quem está buscando se ver representada?

Indico Revelação, que está disponível na Netflix, é um documentário sobre a representatividade de pessoas trans na mídia e sobre transfake. Indico Veneno, uma série espanhola sobre a vida e morte de Cristina La Veneno, uma travesti pioneira. Também indico o trabalho da atriz Renata Carvalho, que é fundadora da Movimenta Nacional de Artistas Trans, a Monart. De influenciadora, indico Agatha Power, que está passando uns dias aqui em casa (risos). De influenciador, Jonas Maria.

Obrigada, Anne. Quer deixar uma mensagem final para as leitoras?

Mães, amem seus filhos trans, porque se a gente não tem apoio na família, a gente não tem nada. Precisamos acabar com esse ciclo violento de sermos expulsas de casa, depois da escola e irmos pra rua. A minha expectativa de vida é de 35 anos. Eu não consigo nem ser presidenta do Brasil porque a idade mínima para ocupar esse cargo é de 35 anos e eu não vou chegar nessa idade. Vamos mudar esse cenário? E para quem está passando por esse processo de transição, digo que não desista. Coisas ruins vão acontecer, mas estamos juntas na luta para que não aconteçam mais.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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