A maternidade e a imigração foram os dois grandes movimentos que fiz na minha vida. Primeiro, meu corpo foi casa. Depois, deslocou-se do lugar que conhecia. Essas duas mudanças influenciaram meu tempo, espaço e matéria. E também a minha escrita. Fui mãe aos 36 e depois aos 38 anos. Comecei a escrever para entender qual era minha função social em meio a tudo isso. A identidade após ter filhos não volta a ser como antes. Não porque se perde, mas porque se desloca. A mulher continua a ser ela mesma, mas com novas prioridades, papéis e desejos. 

Mudar de país em meio a esse deslocamento interno foi difícil. Virei uma mãe imigrante aos 45, numa fase em que meu corpo doía, meu tempo já não me pertencia e dava como certo que meu lugar era o Brasil. Meu marido recebeu uma proposta de trabalho em Portugal e nós decidimos nos mudar com as crianças. Foi durante a pandemia, numa época em que a esperança tinha abandonado os brasileiros. Resolvemos buscá-la em outro lugar. 

A pior parte foi o primeiro ano de adaptação, quando você precisa entender como o país funciona: desde as burocracias de tirar os documentos, até os serviços de saúde e os transportes.

O choque cultural também é grande e é preciso estar aberta ao novo, ainda mais quando a gente tem filhos em fase escolar. Para mim, o mais difícil foi conviver com a solidão, a mesma que eu já conhecia desde que virei mãe.   

Para me fortalecer, me apeguei à ideia de que nossos sonhos e sentimentos nunca morrem. Eles ficam ali, guardados em alguma gaveta do coração, esperando o momento certo de voltar. Digo isso porque um dos meus sonhos quando era jovem era conhecer o mundo. Talvez porque tenha sido uma adolescente de 15 anos sem grandes perspectivas de viajar. Nasci numa família de classe média baixa do subúrbio de São Paulo. 

O seu Orlando, meu pai, é filho de imigrantes pobres. Portugueses que foram para o Brasil no início do século vinte, na época da imigração em massa que o governo brasileiro promoveu para “branquear a população” e ter mão de obra para a agricultura. Meu pai nasceu no Brás e depois mudou-se para a Vila Formosa, onde meu avô comprou um terreno e construiu uma casa. A casa da rua Argonautas. O lugar onde cresci. 

Era lá, do alto da janela do meu quarto, que sonhava com o mundo. Meu horizonte não era muito animador: o telhado dos vizinhos, a torre da igreja do bairro, onde o sino badalava a cada meia hora deixando seu estrondo voar bem mais longe do que minhas asas podiam alcançar. Minha família nunca tinha dinheiro para viajar. Fui conhecer o esplendor do mar na adolescência, numa viagem para a casa de um tio em Ubatuba. Me apaixonei pelo oceano. Queria atravessá-lo por dentro, percorrê-lo de ponta a ponta até me afogar em seus braços. 

Aos 25 anos tornei-me jornalista e adivinha qual foi a minha primeira área de atuação? O jornalismo internacional. Cobri as guerras do Afeganistão e do Iraque, estudei Geopolítica e idiomas. Fiquei obcecada em sair do país. Porém, não tinha como me manter financeiramente. Desisti da ideia quando conheci meu marido. Casei, tive filhos e deixei de sonhar com o outro lado do oceano. Quando meu corpo já fincava raízes, veio a possibilidade de ganhar asas. 

Assim, trinta anos depois, a adolescente que fui cruzou o Atlântico para encontrar um novo lar. E na terra dos meus ancestrais e do meu avô Manuel, que era de uma aldeia em Babe, em Trás-dos-Montes, norte de Portugal. Isso aconteceu há exatos três anos. O tempo que sou mãe imigrante.

Nesse período, comecei a escrever ficção. Acho que precisava  inventar personagens que me fizessem companhia nos momentos de solidão. Hoje posso dizer que imigrantes são pessoas que não desistem de sonhar, apesar das dificuldades. Com uma resiliência acima da média e uma vontade de enxergar o que existe além do horizonte. 

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  • Lu Rodrigues

    Nasceu em São Paulo e hoje mora em Lisboa. É escritora, jornalista e mãe do Rafael e da Clara. Trabalhou por duas década...

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