A benzedeira Camila Gomes lançou uma campanha de financiamento coletivo para viabilizar a publicação do livro que valoriza os saberes das benzedeiras como patrimônio imaterial de Florianópolis.
Por muito tempo, o benzimento foi o único recurso para quem não tinha acesso aos serviços de saúde. Cabia às benzedeiras, proferir seus bendizeres para evocar a cura do corpo e do espírito. Na ilha de Santa Catarina, este conhecimento tradicional não se perdeu, pois é parte da vivência cotidiana de muitas mulheres ainda hoje.
É o caso de Camila Gomes, 41 anos, a mais jovem benzedeira da ilha, mapeada pelo projeto “As benzedeiras de Florianópolis: inventariando saberes”, que contou com recursos do Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura de 2019, em reconhecimento a prática que é patrimônio imaterial da ilha.
Recentemente, Camila lançou uma campanha de financiamento coletivo para a publicação do livro “Memórias de uma Benzedeira Contemporânea – Da Insanidade ao Sagrado”, no qual apresenta relatos autobiográficos de sua trajetória. Até 28 deste mês é possível apoiar e adquirir um exemplar.
O chamado espiritual chegou cedo na vida de Camila. Em seu processo de autocura, ao longo de quase duas décadas, ela vivenciou diferentes religiões, virou mãe, educadora popular, formou-se em Psicologia e se tornou terapeuta holística até se constituir como benzedeira autônoma.
“O movimento de cura veio quando alinhei minha fé com minha força interna (herdada e honrada por minhas ancestrais) e a conexão com a natureza”, diz a autora, no livro.
Entre benzedeiras, feiticeiras e bruxas, a figura feminina é central em seus diferentes momentos de vida – a criança, a mulher adulta e a anciã – para a construção do relato no livro. Em entrevista ao Catarinas, ela fala sobre a sua fé na benzeção, como foi a iniciação no ato de benzer e como se constituiu benzedeira para a comunidade.
“Todas nós somos benzedeiras, bruxas e feiticeiras. Eu digo que a física quântica, o poder da mente, todo esse movimento da neurociência são ferramentas técnicas e algo que a gente já sabia há muito tempo. Está adormecido dentro de nós por tantas apropriações e violências”, afirma Camila.
Acompanhe a conversa que tivemos com a benzedeira, psicóloga e mãe do Mateus, 18 anos, e do Francisco, 10 anos.
Assista ao vídeo da campanha:
CATARINAS – Você se recorda de algum contato com a benzeção na infância?
Camila: Na minha infância, eu fui criada em Floripa, sou manezinha e estudei em colégio de freira. A minha referência de espiritualidade sempre foi com a minha avó paterna, que foi a avó que cresceu comigo. Ela era muito católica. Eu queria ser freira quando eu fosse adulta, já tinha uma coisa da espiritualidade muito forte. A minha família era católica, mas não praticante, mas eu tinha uma adoração pela questão da espiritualidade, da religião. Quando eu era muito novinha, com quatro, cinco anos, eu tive verrugas em todos os dedos da mão e elas começaram a vir para a boca, o corpo, no rosto. Foi uma coisa bem intensa.
Eu fiz um tratamento com o dermatologista na época, por decisão de meus pais, e queimava, eu lembro que chorava muito. E a minha avó paterna pediu uma roupa minha para levar para benzer. Eu lembro desse episódio era uma sexta-feira de lua cheia. A minha avó morava em Biguaçu, ela ligou pra minha mãe e disse, num sábado de manhã, “olha lá a Camila que a Dona Maria benzeu ela por causa da verruga”. E a minha mãe chegou, me olhou e eu não tinha mais nada de verruga. Ela chacoalhou o lençol para saber onde estava as verrugas (risos). Essa foi a minha primeira experiência que eu lembro com benzedeira. Eu tinha uma coisa da fé desde muito novinha, e que era minha. Então, a minha experiência de infância é essa com a benzedura.
CATARINAS – O que significa para você a benzeção? Como ela se traduz?
Camila: Benzer é muito da referência do que os meus orientadores espirituais, os meus guias trazem. Benzer é bendizer, é dizer o bem. É quando você, de alguma forma, aciona o amor dentro de você e o entrega , o propaga onde quer que você esteja, em qualquer que seja a sua função. Eu entendi que como eu fui trabalhada, eles dizem burilada, “minha filha, você foi burilada para cuidar de pessoas. Você estudou para isso, você teve experiências nesse sentido”. Então eu fui burilada para esse lugar. Eu não consigo apenas pensar no benzimento, na benzeção como uma reza solta. Eu acho que eu posso entregar um pouco mais porque de alguma forma eu fui orientada e conduzida para isso.
Os meus processos de benzimento são sempre uma escuta, uma conversa e a reza como o clímax da experiência. Para mim é isso. É dizer o bem, é ‘bem dizer’, é acolher, é nutrir, é respeitar. É fazer esse movimento.
Dentro da minha perspectiva eu faço desse jeito, mas eu acho que todo mundo tem o dever de bendizer, de dizer o bem, de entregar o seu bem para o mundo.
CATARINAS – O que você mais aprendeu pelo ato de benzer?
Leia mais
Camila: Eu aprendi sobre o amor, sobre a entrega, sobre essa relação de respeito, do não julgar. Quando tu te colocas na posição de acolher, de se abrir para o outro, o outro se abre para você e ali acontece esse movimento de amor e de conexão. Se de alguma forma você acredita que sabe mais do que o outro, com um certo julgamento ou com uma certa superioridade de que você está para além do outro, não acontece. Dentro da psicologia, dentro de algumas práticas, eu questionei um pouco isso do lugar desse condicionamento de você saber mais, de você estar subjugando o outro como alguém que saiba menos.
Quando você se entrega, olha no olho e está na mesma conexão, a magia acontece. Eu digo que a magia acontece quando a gente está despida de qualquer saber, despida de qualquer autoridade. Você está ali enquanto humano e divino.
Encontrando o humano e o divino no outro. Eu aprendo a cada vez que eu faço isso porque é muito tempo do sentir, é sinestésico. É para além do campo mental.
CATARINAS – E o que se benze? O que pode e não pode ser benzido?
Camila: Eu digo que eu sou uma benzedeira contemporânea justamente porque eu tenho rezas específicas para poucas coisas. As pessoas perguntam “você benze cobreiro, você benze quebranto” e eu digo “eu benzo você, vamos lá, vamos entender”. Para mim não faz sentido uma reza específica para algo. Eu entendo que a cultura se fez assim. E está tudo certo. Eu, Camila, dentro daquilo que eu vivencio no presente, não cabe para mim dizer “eu benzo cobreiro”. Eu benzo o sujeito. Eu bendigo os sujeitos. E acredito que é possível se a gente acessar essa centelha divina dentro de cada um, é possível essa cura ceder.
Muitas experiências exitosas em relação a isso. E não sou eu. É a conexão. Não fui eu, fomos nós. Eu não consigo sozinha. Se você não se abrir, se você não se entregar, se você não encontrar essa divindade dentro de você e a sua fé, não acontece. É só um instrumento.
CATARINAS – E como que tu vês a continuidade desse saber? Porque você está dando continuidade a saberes de mulheres que o construíram ao longo dos anos.
Camila: Sim, é lindo. Eu sempre me emociono quando penso nessa relação. É como se elas me deixassem no meio de um caminho já. Muitas foram queimadas (se emociona). Muitas foram violadas, muitas foram suprimidas desse saber ou subjugadas por ele. E hoje, por todas elas, de alguma forma eu estou aqui sendo valorada. Somos todas essas mulheres que de alguma forma lá atrás, inclusive as minhas ancestrais foram subjugadas por querer bendizer. E por vezes acabavam mal dizendo porque eram tantas violências, tanta opressão que precisava sair de alguma forma. E sim, nós somos mais poderosas enquanto femininas.
Esse lugar é muito potente. E poder dizer que ser benzedeira não é simplesmente saber uma reza de cor e fazer o movimento da cruz com água, com ervas e tudo isso. É bendizer o mundo. É entregar para o mundo esse bem que você tem aí dentro de você. É sobre isso. Ocupar esse lugar, hoje, não é personificar a benzedeira ilhoa, é também, mas não é só isso. É dizer que todas nós podemos. É mencionar que todas nós temos algo a bendizer ao mundo. E se colocar como uma benzedeira é se colocar no seu ofício do bendizer.
E não apenas aquela senhorinha de lenço na cabeça e erva na mão que sabe um apanhado de rezas decoradas. Porque essa também eu sou. Eu não sou uma mulher muito vaidosa, mas eu gosto de me arrumar. Eu não uso lenço no cabelo, mas às vezes eu boto um turbante. Eu não estou lá com a ervinha na mão, mas eu adoro as ervas. Mas quando você chegar na minha casa vai ter vidro de ervas. É contemporâneo. Embora eu more na Costa da Lagoa não é esse lugar da cultura. É uma cultura viva que está sendo escrita, que está sendo construída e que precisa do contemporâneo, de ir se transformando nesse lugar.
CATARINAS – Em relação a essa cosmovisão da benzedeira, feiticeira e bruxa, como você percebe essa intersecção entre essas figuras femininas?
Camila: Todas nós somos benzedeiras, bruxas e feiticeiras. Eu digo que a física quântica, o poder da mente, todo esse movimento da neurociência são ferramentas técnicas e algo que a gente já sabia há muito tempo. Está adormecido dentro de nós por tantas apropriações e violências. Ser feiticeira todas nós somos é só a gente desvelar essa consciência neuroquímica.
A mulher tem uma intuição, uma visão mais ampliada. Bruxa é aquela que maldiz, é aquela que enfeitiça. Quantas de nós nos envenenamos, às vezes, por sermos violadas, por sermos oprimidas. E a nossa resposta é uma resposta humana e não divina. Eu digo que o humano e o divino habitam em todas nós.
Sim, tem dias que eu sou mais feiticeira do que benzedeira, tem dias que eu estou bendizendo o mundo, os passarinhos e até o trabalho doméstico. E tem dias que eu estou bruxa.
Se perguntar para os meus filhos se eu sou bruxa ou benzedeira talvez eles digam “minha mãe é mais bruxa do que benzedeira”. Acho que é um pouco sobre isso também, sobre o fetiche de a gente achar que alguém é só benzedeira. Não. Tem todo lugar de apropriação. Somos tudo isso em um profundo eu.
CATARINAS – E como tu podes explicar pra gente o tema do teu livro “Da insanidade ao Sagrado”?
Camila: Da insanidade ao sagrado é esse percurso do diagnóstico que eu mesma me dei dentro da faculdade, de esquizofrenia, de tudo que eu estava vivendo. E encontrar dentro da fé, ser guiada e entender que aquilo era sagrado. Não era uma insanidade, era um sagrado. E era algo que eu tive, como dizem os meus mentores, que burilar para que ficasse belo e sagrado. Porque sim, por vezes parecia uma loucura. Desmaios, vômitos, doenças, episódios de quase morte até você entender que aquilo era o percurso e não era o fim, era o meio.
Então, o livro é para falar um pouco sobre isso, de quantas opressões, quantas violências, quantas questões a gente vive na nossa vida que parecem insanas, mas que de alguma forma estamos burilando, estão nos ajustando para algo ser divino e sagrado dentro de nós, dentro da nossa experiência, sobre essa passagem da vida. É um recorte do percurso de como foi se tornar benzedeira na contemporaneidade e com algumas correlações de memórias desveladas, coisas de vidas passadas que eu fui encontrando dentro de mim e que fazem essas conexões com as emoções que eu sentia, com alguns manifestos. São histórias que compõem o livro.
Clique aqui e financie a publicação.
SERVIÇO:
O QUE: Financiamento coletivo para publicação do livro “Memórias de uma Benzedeira Contemporânea – Da Insanidade ao Sagrado.”
QUANDO: Até 28 de outubro
QUANTO: A partir de R$ 35
CONTATO: (48) 9 9102-2683 (Whatsapp Camila)