“Vale a pena lutar pela verdade”, disse certa vez Derlei Catarina de Luca, símbolo da resistência à ditadura civil-militar. Estudante de pedagogia da UFSC no período ditatorial, Derlei foi perseguida, presa e torturada. Falecida no final do ano passado aos 70 anos, ela dedicou parte da vida a trazer à tona a verdade sobre o que foram os 21 anos do regime de exceção no Brasil. A ativista foi lembrada nesta terça-feira (6), na apresentação do relatório final da Comissão Memória e Verdade da UFSC, em um pequeno auditório no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH).

Acesse o relatório.

Para uma plateia de aproximadamente 50 pessoas, o coordenador da comissão, Jean-Marie Farines, apresentou a missão do relatório: levantar os fatos relacionados a violações de direitos humanos e das liberdades individuais ocorridos na UFSC durante o regime de exceção para que o passado não seja repetido. Em mais de 400 páginas o relatório traz o resultado de quase quatro anos de investigação.

Ao enfrentar o passado, a UFSC se vê diante da necessidade de mudar o nome do campus sede em Florianópolis, Reitor João David Ferreira Lima, o qual homenageia o primeiro reitor da universidade e também maior apoiador do regime. A comissão é enfática ao recomendar a não atribuição de títulos e homenagens universitárias a pessoas que, “reconhecidamente, feriram ou ajudaram a ferir os Direitos Humanos” e a reavaliação das homenagens dadas anteriormente.

Oficialmente 20 mil pessoas foram submetidos à tortura, 434 mortas ou desaparecidas, 800 presas e 7 mil exiladas durante o regime no país. Somente a partir de 2012 foi estabelecida a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), das Comissões Estaduais, Municipais e de Instituições. A UFSC é uma das últimas universidades a concluir o relatório.

A ironia de um presente que por via democrática elege à presidência do país um saudoso da ditadura e da tortura é forjada no apagamento de um passado que bate à porta. Os princípios que justificaram a deflagração e continuidade do regime civil-militar em 1964, do anticomunismo ao nacionalismo, passando pela defesa dos valores cristãos e da família, são os mesmos que sustentam o apoio a Jair Bolsonaro. “Ao analisar os aspectos políticos da Operação Barriga Verde e pensá-los de forma mais ampla, é perceptível essa construção no imaginário político brasileiro de que o anticomunismo salvaria os valores tradicionais das famílias”, aponta o texto.

“O debate sobre democracia e direitos humanos é muito caro às ciências humanas, objeto de contínua reflexão, pois a todo momento há tentativas implícitas e explícitas de pessoas pouco afeitas a democracia. O trabalho nos ajuda a entender como se instalam governos autoritários”, pontuou Miriam Hartung, diretora do CFH.

Por meio da linha histórica dos atos institucionais baixados pelos governos ditatoriais que aos poucos endureceram a repressão, Farines apresentou os principais acontecimentos que atravessaram a universidade e comunidade. O relatório revela que muitas/os professoras/es e administradoras/es ao contrário de se imporem à repressão, a apoiaram prontamente e, mais do que isso, foram proativos em sua defesa.  

Mas é preciso demarcar houve também muita resistência e as mulheres estiveram à frente dela. A força do movimento conseguiu entre outras vitórias barrar a reforma universitária pautada pelo interesse do regime em privatizar o ensino. Reuniões, greves e atos foram articulados contra o fim da violência, por moradia estudantil e mais verbas para a educação.

Ditadura não acabou
Para aquelas e aqueles que acreditam que a ditadura foi branda em relação ao que ocorreu em países vizinhos como Chile e Argentina, o coordenador parafraseou análise do Relatório Figueiredo: “violência não se mede somente pelo número de mortes e tortura, mas pelo desrespeito aos DH”.

“A morte não foi somente física, mas da cultura. Essa morte é menos visível, mais lenta e insidiosa. Se retiram o direito de um país de pensar, a morte se faz presente. Ao que dizem que o período trouxe calma e paz, só se for a paz das prisões e cemitérios” afirmou Farines. 

Diferente de outros países da América Latina, o Brasil não condenou ou sequer processou torturadores e assassinos do período. “Na História, esta anistia não existe”, critica o relatório em relação à recusa do Estado em julgar o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, contrariando recomendação da Corte Interamericana.

Segundo o relatório, a violência de Estado intensificada no regime, ainda hoje não está desmontada plenamente, apenas tiveram modernizados os seus sistemas de controle amparados nas garantias das Forças Armadas, conforme estabelecido no Capítulo II – Art. 142 da Constituição Federal.

“O contexto do golpe de 64 tem na sua linguagem ideológica apenas um semblante político assumido por diferentes forças políticas da época, mas que no fundo reflete uma síntese de uma violência de Estado que é muito mais ampla do que o golpe de 64. E é neste ponto que o golpe de 64 não acabou”, diz o relatório.

Marli Auras, também integrante da Comissão, argumentou que o atual ataque aos estudos acadêmicos, especialmente de gênero, e ao pensamento crítico nas salas de aula é legado do período. “Os estudos para que nos compreendamos enquanto povo estão sendo considerados subversivos. Quando a gente não presta contas sobre o passado, o passado não passa, atravessa o presente. A eleição de um homem que diz que a ditadura deveria ter matado mais significa a volta desse passado”, analisou.  

“Os laços econômicos e sociais, as relações desiguais, absurdas e violentas que a elite mantém com a população mais pobre continuam intactos desde a ditadura”, assinalou Iara Hornke da Comissão Estadual da Verdade.

Queima de livros
Exemplo de que parte do corpo docente escreveu a história ao lado dos autoritários foi a participação do professor Nereu do Vale Pereira, na queima de livros do acervo da Livraria Anita Garibaldi, no centro de Florianópolis.

“Quando havia algo que eu pudesse contribuir para derrotar os comunistas eu estava junto, sem dúvida nenhuma. Isso era uma guerra”, disse ele em entrevista ao Laboratório de História Oral, em 2004.

De antiga propriedade de Salim Miguel, preso um dia após a instalação do regime por integrar o Partido Comunista, a livraria era ponto de encontro de pessoas que gostavam de ler e de trocar ideias.

“A Livraria foi arrombada, documentos foram furtados e livros foram jogados na esquina central da cidade, onde o surgimento de uma vigorosa fogueira tratou logo de destruir aquela profusão de palavras então consideradas perigosas, subversivas”, diz o relatório.

Expoente da resistência, a escritora Eglê Malheiros, companheira de Salim Miguel, ao chegar ao lugar, viu os livros reduzidos a cinzas. Ao lado dela o padre Braun, do Colégio Catarinense, que não a conhecia disse “Meu Deus, será que vamos voltar aos tempos de Hitler?”

O relatório mostra ainda a conivência da imprensa tradicional, que se apresentando como neutra, tratou logo de apoiar o crime. O jornal A Gazeta, de Florianópolis, na edição de 5 de abril, trazia como manchete principal “Populares incendeiam livros marxistas na Liv. Anita Garibaldi”. No subtítulo se auto proclamava um “jornal sem quaisquer ligações partidárias” . “O povo florianopolitano deu provas sobejas de sua fibra democrata, extinguindo um foco pernicioso que há vários anos se instalara em pleno coração da cidade”, informava na primeira página.

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Além do ataque, Nereu do Vale Pereira denunciou aos órgãos de repressão pessoas que eram consideradas comunistas e militantes. “Havia esses dedos-duros, esses caras da UDN, bem fanáticos, muito mais perigosos do que os militares da época”, disse o professor Armen Mamigonian, em seu depoimento.

Outro destaque do apoio de professoras/es ao regime foi a Campanha da Mulher pela Democracia – CAMDE, presidida por Maria Carolina Gallotti Kehrig. Em 15 de abril de 1964, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” expressou apoio à vitória da chamada “revolução”. “A maior demonstração de civismo jamais realizada em Florianópolis”, considerou o jornal O Estado.

A influência dos EUA
A narrativa de que ditadura se justificou diante do inimigo a combater para barrar o projeto comunista não tem base em pesquisas científicas, como afirmou o coordenador da Comissão. De acordo com ele, estudos acadêmicos apontam que havia dois projetos de país, um favorável às reformas de base de João Goulart e o que representavam em termos de soberania popular, e o outro contrário à interferência do Estado na economia, em confluência com as grandes potências, especialmente os EUA.

Registros apontam para a influência demarcada dos EUA por meio de seu embaixador no apoio a centros e institutos de pesquisa para a formação de opinião pública ao encontro dos interesses golpistas.

Churrascada em homenagem ao embaixador/Acervo Agecom

O apoio do governo estadunidense ao regime de exceção também está marcado na história catarinense. No ano do golpe, em 26 de abril, a visita do embaixador daquele país, Lincoln Gordon, ao campus foi comemorada com “churrascada nos jardins do Palácio da Reitoria”. O jornal O Estado deu amplo destaque a essa visita na capa: “Gordon diz em discurso que evolução econômica está em marcha em SC”.

Alvo de denúncias de improbidade administrativa, o reitor à época, David Ferreira Lima, aderiu sem hesitar à perseguição política daqueles que se opunham ao regime. Em atenção ao Ato Institucional nº 1, a reitoria instalou a Comissão de Inquérito a fim de realizar “investigação sumária” e caça de “subversivos”.

“A própria existência da Comissão é prova cabal do uso indevido de recursos públicos, dado o seu claro compromisso em calar o debate no interior da instituição universitária, em aniquilar nela a produção e a circulação do contraditório, tudo isso em favor da ascensão de projetos excludentes, beneficiadores de determinados e poderosos grupos empresariais, descompromissados com as demandas das maiorias”, diz o relatório sobre a participação do reitor.

As mulheres no protagonismo da resistência
O relatório traz o título “As Mulheres na UFSC Durante a Ditadura Militar” que trata do protagonismo delas no movimento estudantil. Três das principais lideranças femininas estavam entre os 15 delegados que participaram do Congresso clandestino da UNE em outubro de 1968, em Ibiúna (SP): Derlei Catarina de Luca, Gilda Laus e Rosemarie Cardoso.

“Apesar do número pequeno de mulheres em relação aos homens, é notável a sua presença na comitiva, pois foram à Ibiúna as principais lideranças do movimento estudantil”, aponta o documento.

O processo do DOPS de São Paulo revela que 723 estudantes foram fichados após o fechamento do Congresso da UNE. Dentre eles, 15 eram catarinenses. “Estava definitivamente acabado para mim o período de estudante. Partia para outra vida”, relatou Derlei no seu livro No Corpo e na Alma sobre as prisões.

Meses depois, o regime militar avançava. Em 7 de dezembro de 1968, o presidente Costa e Silva realizou uma visita em Florianópolis e os estudantes foram presos antes de articularem algum protesto.

Rosemarie Cardoso na fila de presos no Congresso clandestino da UNE/Acervo Agecom

A ditadura civil-militar recrudescia cada vez mais e em 13 de dezembro de 1968 o Ato Institucional número 5 (AI-5) foi instaurado. “Apesar das prisões anteriores não terem tido maiores consequências, sabemos que desta vez é pra valer. Não haverá habeas corpus. Não sabemos exatamente como será”, disse Derlei.

Em 23 de novembro de 1969, Derlei foi levada para a Operação Bandeirante, onde foi intensamente torturada e solta depois de dois meses, quando passou a viver na clandestinidade. 

Na década de 1970 a universidade foi expandida com aumento de cursos e estudantes, o que elevou também o número de mulheres. Muitas dessas estudantes narram a entrada à Universidade como um momento de iniciação política.

“Tinha preocupação em saber a origem da miséria. Porque tinha tanta gente pobre, porque tinha gente rica. Mas eu não tinha compreensão que vivíamos numa ditadura militar, nem que havia tortura nesse país, que havia prisioneiros”, disse Rosângela Koerich Souza sobre o véu que se abriu  ao entrar na UFSC em 1975, primeiro cursando Letras e no ano seguinte mudando para o Direito.

Em 1975 é deflagrada a Operação Barriga Verde, encabeçada pelo DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do Exército. O objetivo era, principalmente, a cassação, apreensão e extração de informações – mediante tortura se fosse preciso, como já era de costume – dos integrantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que atuavam em Santa Catarina.

Após as prisões resultante da Operação Barriga Verde, o movimento de mulheres também esteve à frente na luta pela Anistia aos presos e exilados políticos e por melhores condições para os encarcerados.

Na fala das entrevistadas desse período a percepção é de que as mulheres eram muitas, ou mais que os homens. “A gente tinha uma discussão muito de igual mesmo para com os homens. Mas eu vou te dizer, eu tenho certeza que isso também era pela propriedade dos argumentos, sem dúvida. Porque eu acho que aí é que se igualam os gêneros. E como a gente tinha isso muito claro, os homens tinham que ter bons argumentos pra contrapor!”, disse Thais Lippel, na época estudante de Medicina e irmã de Marize.

Entre as lideranças também estavam também Marize Lippel, eleita presidenta da do CABM que representava o centro Bio-Médico, em 1978; e Ligia Giovanella vice da chapa que venceu, em 1979, a primeira eleição direta para o DCE desde o golpe militar.

Como analisa a comissão, a base de mulheres possibilitou a reorganização do movimento estudantil na UFSC que protagonizou em novembro de 1979 uma das principais mobilizações contra a ditadura: a Novembrada. Estudantes, trabalhadoras/es, donas de casa e até crianças protestaram em frente ao Palácio Cruz e Sousa, centro da capital, contra a visita do ex-ditador João Figueiredo. Dia em que diversas pessoas foram presas, entre elas as estudantes Lígia Giovanella, Marize Lippel e Rosângela Koerich de Souza.

Recomendações do relatório
A comissão recomendou entre outras ações a publicação do relatório em livro, realização de um documentário, criação de um Acervo da Memória e dos Direitos Humanos e de um Memorial dos Direitos Humanos na UFSC. O relatório deve ser encaminhado às Comissões Memória e Verdade Estadual e Nacional e ao Ministério Público Federal para “registro, apuração e responsabilização dos responsáveis pelas violações de direitos humanos, perpetradas no período da ditadura civil-militar”.

Conforme o relatório, a administração e a comunidade acadêmica da UFSC têm a missão de continuar o trabalho iniciado pela Comissão para manter viva a memória. “Que o conhecimento desse período histórico na nossa instituição nos desafie a construir uma base permanente de Educação para os Direitos Humanos.”

Atualizada às 14h30 de 8 de novembro.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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