Linguagem pela democracia. Dicionário explica origem e contexto atual de termos como “ideologia de gênero”, “marxismo cultural” e “racismo reverso”
Verbetes e expressões como “ideologia de gênero”, “marxismo cultural” e “racismo reverso” têm sido usados intensamente no debate político brasileiro, geralmente de maneira equivocada, mas agora contam com um dicionário próprio. O “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia” explica a origem e contexto dessas expressões em dois e-books gratuitos.
Lançado pelo Observatório de Sexualidade e Política/Sexuality Policy Watch (SPW), junto com pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, o objetivo do material é contribuir para o pleno entendimento das pessoas, para que elas e possam decidir, de modo informado, se desejam ou não usar essas expressões e de que modo usá-las.
São dois livros eletrônicos disponíveis para download desde o início de maio: um em formato mais completo, para nível acadêmico, e outro em versão simplificada, mirando o conhecimento médio e estudantil. A distribuição também é livre.
Em entrevista ao Portal Catarinas, a jornalista Nana Soares, pesquisadora com foco em gênero e sexualidade e assistente de comunicação e pesquisa no SPW, contou que o dicionário surgiu de uma insatisfação e de uma autocrítica. A ideia partiu de Sonia Corrêa, coordenadora do observatório. Sonia é ativista e pesquisadora nos temas de gênero, sexualidade, saúde e direitos humanos desde a década de 1970.
A ativista percebeu que durante as eleições de 2018 e 2020, candidatas e candidatos a diferentes cargos políticos se mostraram incapazes de responder, de maneira assertiva, às acusações de propagarem “ideologia de gênero” e “marxismo cultural”.
Um caso que ilustra esse cenário é abordado logo na introdução do material. Um debate para a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2020, em que o candidato à reeleição Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, acusa o (agora prefeito) Eduardo Paes de propagar a “ideologia de gênero” e Paes não responde. Muda de assunto.
“Foi esse incômodo de que ninguém responde a acusação de ideologia de gênero que inspirou a produção do dicionário. Ou seja, o lado de lá está dominando a narrativa. Eles pegaram essa expressão, cunharam essa expressão, fizeram uso político dela e ninguém sabe direito como responder”, conta Nana Soares.
A produção do material envolveu cerca de dez profissionais, num processo que começou em março de 2021. Uma equipe composta por linguistas aplicadas, tradutoras, sociólogas e antropólogas trabalhou na elaboração dos textos. Nana Soares, por exemplo, é autora do tópico sobre o “politicamente correto”. Já para o termo “cristofobobia”, uma pessoa de religião evangélica ficou responsável pela redação final.
“A gente tomou o cuidado no verbete da cristofobia, que é um verbete super delicado, trazer uma pessoa evangélica para escrever sobre. A nossa intenção não é fazer com que a pessoa que lê se sinta discriminada, diminuída. É justamente o contrário. Mostrar para as pessoas que determinadas falas têm uma história. Se a pessoa quiser continuar usando (os termos) aí é com ela, mas tem um motivo por trás desses termos circularem tanto”, explica a jornalista.
Metodologia
Em meio à intensa disputa de narrativa puxada pelo campo da extrema-direita, o dicionário é um esforço para abrir o diálogo com um público mais abrangente. As pessoass organizadoras do dicionário reconhecem que há uma lacuna na comunicação entre o campo progressista e grande parte da população acaba sendo alcançada primeiro por informações incorretas.
“Como pesquisadoras e pesquisadores que atuam no contexto político brasileiro, consideramos que o conhecimento acadêmico sobre o novo vocabulário do conservadorismo e da direita é muito valioso. Só que ele nem sempre chega ou não é absorvido pela maioria da população que é hoje a audiência principal desses discursos, sobretudo nos canais digitais. Essa lacuna está na origem da nossa autocrítica. A dificuldade de divulgar conhecimento científico em linguagem direta para a população compromete a elaboração de respostas adequadas às acusações que esse vocabulário mobiliza”, diz trecho da introdução do dicionário.
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Para facilitar a compreensão do dicionário, foi utilizada uma ferramenta que calcula de forma automática o grau de facilidade de leitura de um texto. A Coh-Metrix-Port 3.0 avalia traduções intralinguísticas (explicar o que é), tornando-as mais objetivas, além de fornecer uma escala de nota, o que ajudou a nortear a escrita do dicionário.
Nana Soares cita como exemplo textos do campo progressista que tiveram nota muito menor do que textos da extrema-direita brasileira:
“As coisas do lado de lá chegavam a ter o triplo da nossa nota. Teve um discurso do Bolsonaro que chegou a nota 54, enquanto a nossa chegou a 16. É uma ferramenta de 0 a 100 e quanto mais próximo de 0 mais difícil a compreensão. O texto deles é construído para ser mais fácil e não é a toa que ele pega. Daí parte a nossa atenção, o nosso cuidado de produzir algo mais fácil de entender, justamente para que ele possa ser uma ferramenta, ser encaminhado, usado em sala de aula”.
Extrema-direita
Além da política brasileira em si, um dossiê acadêmico francês também serviu de inspiração para a concepção do dicionário. Publicado pela Reviste Nouvelle e editada por Renaud Maes e David Patternote, a coletânea aborda os novos lugares comuns da direita. O dossiê oferece informação e análise qualificada sobre as origens e circulação transnacional desse tipo de vocabulário, apontado pela SPW como praticamente o mesmo na França e no Brasil. Mas a produção brasileira optou por uma linguagem menos acadêmica.
“Isso que a gente acha que eles fazem de uma maneira simplista, esses truques linguísticos, é bastante elaborado. Justamente para parecer que é simples, mas tem muita coisa ali. É uma grande estratégia muito bem sucedida. Não se reproduz tão intensamente ‘ideologia de gênero’, patriotismo, marxismo cultural por acaso. É um projeto”, pontua Nana Soares.
Rodrigo Borba, integrante da equipe que elaborou o dicionário e docente do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, explica em entrevista ao Catarinas que o uso estratégico de certos termos faz parte do discurso político desde sempre. Mas com a articulação da nova direita, no Brasil, e a ascensão da extrema direita no mundo, isso tem ficado cada vez mais frequente.
“Agora os termos reapropriados são palavras tradicionalmente associadas ao campo dos direitos humanos e ao campo progressista. Por exemplo, liberdade’ e principalmente ‘liberdade de expressão’, especialmente durante a pandemia e, mais recentemente, no caso do Daniel Silveira, passaram a ser usadas com sentidos muito amplos para falar sobre a ‘liberdade’ de não se vacinar ou a ‘liberdade de expressão’ como justificativa para atacar violentamente instituições democráticas como as eleições e o STF”.
Segundo Rodrigo, embora pareçam esdrúxulos à primeira vista e causem estranhamento, o contexto distorcido aplicado a essas palavras faz sentido para determinados grupos, já que carregam sentidos ambíguos que não estão nos dicionários tradicionais. Essa multiplicidade de sentidos explica, em parte, porque é tão difícil discutir certos termos e assuntos, seja na vida pública ou na vida privada.
Democracia
Tornar a comunicação do campo progressista mais assertiva é um verdadeiro desafio para educadores, políticos, influenciadores e comunicadores que defendem pautas ligadas à justiça social, direitos humanos e igualdade de gênero, por exemplo. Perguntado sobre como vencer essa disputa de narrativa com o campo da direita, Rodrigo Borba afirma que não há receita de bolo e que contextos diferentes vão exigir estratégias diferentes.
“Um bom começo é entender o que está em jogo, quem criou certas narrativas, de onde elas vêm e como funcionam. Foi justamente isso que nos motivou. Cada verbete conta a história dos termos e mostra os momentos de inflexão, quando novos sentidos foram sendo aglutinados. Com isso, por exemplo, uma professora acusada de propagar “ideologia de gênero” vai ter recursos para desbancar essa narrativa e mostrar que se trata de um espantalho produzido precisamente para criar medos. Afinal o que há de tão amedrontador em falar sobre igualdade entre pessoas?”
O projeto segue em andamento. A intenção é publicar outros e-books antes das eleições de outubro de 2022, incluindo novos bordões. Entre eles, “liberdade”, “interseccionalidade”, “teoria decolonial” e “teoria crítica de raça”. Também há planos de traduzir o conteúdo dos verbetes em outras linguagens e mobilizar debates populares em produtos digitais, podcasts, conversas com influenciadoras e influenciadores, entre outros.
“A linguagem sozinha não muda o mundo, mas ela ajuda a visibilizar o que precisa ser mudado. Ela é didática nesse sentido. Ela te faz pensar. A gente faz uso da linguagem o tempo todo e se a gente quer um projeto democrático ele tem que passar pela linguagem também”, fecha Nana Soares.