Por Fabiane Albuquerque *
Talvez este seja um dos textos mais difíceis que escrevo, pois a ideia de escrevê-lo se deu logo após ver as cenas chocantes de um grupo de religiosos, dentre os participantes muitas mulheres, gritando e esbravejando “assassina, assassina”, diante da clínica onde uma menina de dez anos passou por um aborto, após os inúmeros estupros que ela sofria desde os seis anos de idade. Quatro longos anos! O que é isso, Brasil? Que inversão perversa é essa de valores, em que uma menina estuprada é o alvo do ódio e dos protestos de gente “terrivelmente cristã?” Não seria justamente um estupro a destruir a família brasileira? Não seriam essas relações violentas e de poder absoluto sobre o corpo de meninas, meninos e mulheres o mal a ser combatido?
Leia reportagem sobre o caso, clicando aqui.
Mas me retenho à participação das mulheres nesse ato e em muitos casos onde elas souberam/sabem e se calaram, abafaram e até mesmo culparam as próprias vítimas.
Seria isso Silêncio, Silenciamento ou Cumplicidade? As mulheres passaram por um processo de desumanização tão violento que as deixaram domesticadas, “mudas”, diante das atrocidades do patriarcado.
Ao ouvir dezenas de relatos de vítimas de abusos sexuais ao longo da minha vida, dentro e fora das famílias, é fato que muitas mulheres contaram terem buscado ajuda de outras mulheres e essas lhes negaram, culpando- as ou se omitindo. Existe um sentimento doloroso vivido por mulheres, e não são poucas, com relação às mães, avόs, tias, primas, irmãs, freiras da paróquia, pastoras etc., que souberam/sabem e nada fizeram, pelo contrário, muitas pediram até mesmo o silêncio das vítimas em troca da “ordem” e da “conservação” dos valores tradicionais da família, da igreja e da sociedade. Nesse caso, somente para reforçar o poder do abusador/violador, acreditando elas que, assim, manteriam a “paz”. Que paz é essa à custa do silêncio da vítima, da negação da sua dor e da omissão por justiça?
Conheci uma das vítimas, abusada pelo cunhado aos nove anos de idade, na casa da própria irmã que, ao contar à sua mãe na época, ouviu dela o seguinte: “nunca conte isso a ninguém para não estragar o casamento da sua irmã”. A criança buscou proteção, consolo e entender o que lhe tinha acontecido e recebera indiferença e culpa, carregando até mesmo a responsabilidade pelo casamento da irmã. E o abusador? Esse continuou livre e legitimado para continuar abusando, visto que não encontrou os limites da lei e a reprovação social, mas silêncio e cumplicidade.
Outra vítima contou-me que fora abusada aos quatro anos pelo primo quando ficava aos cuidados da avó para que os pais trabalhassem. Depois de décadas de sofrimento, resolveu quebrar o silêncio e contar à sua mãe, ouvindo dela o seguinte: “E o que você quer que eu faça?” Acolher essa mulher que traz consigo uma criança ferida, abusada, mãe! Essa frase dessa mulher, também submissa ao marido e aos homens da família, quer dizer: “era melhor nem ter me contado, já que eu não posso te ajudar”. O problema é que muitas mulheres não sabem que podem e devem. As mulheres aprenderam pela coesão, convencimento, força ou recompensa a se calar diante dos abusos dos homens nas famílias e na sociedade. Algumas até se juntaram a eles na opressão de outras mulheres, recebendo uma falsa proteção e uma “cadeira” ao lado do patriarcado.
Outra vítima me disse ter contado à sua mãe, depois de anos, que fora abusada pelo avô aos cinco anos de idade e que o abuso continuou até a sua adolescência, mas a mãe lhe respondeu: “mas ele (o avô) nem está aqui para se defender”. E outra, bastante ferida, fora abusada também pelo avô, pelo pai e pelo irmão, e ao ler o texto que escrevi para o Portal Geledes, intitulado “Pela memória de minha mãe, Alice”, procurou-me para dizer que pensou, por toda sua vida, que fosse ela o problema, pois na época em que contou sobre o abuso, apanhou da própria mãe para que ficasse calada.
As pessoas não têm consciência do que seja o patriarcado e das consequências do poder ilimitado dado aos homens no interior das famílias, poder esse de dizer a última palavra e de impor o silêncio e naturalizar a violência. E quanto mais as mulheres da família os obedecem e se calam, mais os homens confirmam seu lugar de comando. Sem limites ao poder, esse cresce e se perpetua de forma tirada, cruel, perversa e se torna “natural”. Louca é aquela que resolve falar, gritar ou denunciar. Quem já não ouviu a frase “Mas ele é homem!”? A ministra Damares sabe disso. E choca sua falta de empatia para com crianças vítimas de abuso nesse país; ela sequer saiu em público em defesa da menina estuprada pelo tio e violentada pelo grupo que a expôs e jogou sobre ela o ódio do que significa ser “terrivelmente cristão”.
Esse sistema patriarcal começou a ruir em muitos países com os divórcios, com os movimentos feministas, com a ascensão das mulheres ao mercado de trabalho e com as novas legislações. O patriarcado está sendo questionado, para o desespero de muitos homens que querem manter o domínio a todo custo. Mas para a nossa surpresa, ele utiliza de mulheres para se defender e para atacar. Essas que são silenciadas no espaço privado e naquele público ainda tem jeito, mas as que ocupam o espaço público para defender o indefensável, não há como dialogarmos com elas, somente o enfrentamento. Porque uma coisa é uma mulher silenciada, desumanizada, vítima também ela, mas outra coisa é quebrar o silêncio e ocupar o espaço que outrora era somente de homens, não para desafiá-los nas suas tiranias, mas para lhes ajudar a nos calar.
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Os homens não teriam feito tanto estrago (e continuam fazendo) se não fosse a participação de mulheres, e não digo isso para culpá-las mais que aos homens, digo que mulheres participam ativamente na manutenção dessa ordem, algumas através do silêncio imposto pela força ou ideologia, outras, militando dia e noite para manter o poder masculino de usufruir dos corpos de meninas, meninos e mulheres ilimitadamente. Essas últimas, que ganharam as ruas e os espaços de poder, são tão perversas quanto os homens e não haverá trégua, não terá caminho fácil, não tem “sororidade” para com elas. É preciso combatê-las tanto quanto aos estupradores e abusadores, enquanto a mulher silenciada precisa ser empoderada.
E não estou colocando todas as mulheres no mesmo grau de manutenção do patriarcado. Muitas internalizaram que o silêncio é parte da sua condição de ser mulher. Bell Hooks, em “All about Love”, diz que as mulheres aprendem que o silêncio, muitas vezes, é a única forma de proteção. Patricia Hill Collins, ao falar de sua relação com seu pai, diz que uma vez o viu dirigir-se com tanta fúria contra o corpo do seu irmão que ela pensou que se ele, menino, apanhava sem piedade, imagina ela, mulher.
Quando vi o filme “A Cor Púrpura”, entendi melhor a incorporação da violência pelas mulheres oprimidas. A personagem principal fora estuprada pelo padrasto e engravidou duas vezes dele. Como não possuía nenhum valor, fora dada a um homem para ser sua escrava sexual, serva e madrasta dos seus dois filhos. A violência continuou e quando o filho do seu marido/patrão, já grande e casado, perguntou a ela o que fazer com a sua esposa que não o obedecia, ela, que havia sido violentada a vida inteira respondeu: “bate nela”. Foi o conselho de uma mulher violentada ao seu enteado.
Uma vez ouvi o relato de uma psicóloga de Goiânia que, durante sua graduação, participou de um projeto de pesquisa na PUC, atendendo crianças vítimas de abusos, juntamente com suas mães. O trabalho e o testemunho das mães foram impressionantes. Elas contaram que, quando elas foram abusadas, ninguém fez nada por elas, ninguém as protegeu e por repetição, fizeram o mesmo com os filhos e as filhas. Muitas acreditavam que o abuso fazia parte da vida de uma mulher tanto quanto o silêncio sobre isso. Existe nessa dinâmica um misto de reprodução de comportamento, de conformismo e de naturalização, mas também de dor por não ter sido ajudada. Não podemos isentá-las da responsabilidade, mesmo que um dia tenha sido elas as vítimas, pois chega um momento em que o círculo precisa ser quebrado.
E dois casos de ruptura com a ordem vigente desse sistema patriarcal/religioso me chamaram a atenção. Em 2019, na cidade de Cascavel, no Ceará, uma avό contou ao filho que a sua neta e sobrinha dele estava sendo abusada pelo seu próprio marido, avó da criança. O que o tio fez? Já que o pai “podia”, ele também se sentiu autorizado a abusar da sobrinha. A avό, então, passou a trancá-la em um quarto para evitar os abusos dos dois, mas cansada da situação, denunciou marido e filho. Que força! Muitas teriam se calado. Isso demonstra que não existe grau de escolaridade que impeça uma mulher de romper com o silêncio e a cumplicidade nos abusos, não existe classe social, tampouco idade e que os tempos são outros. Ela enfrentou o patriarcado. Claro que se fosse há uns 100 anos atrás ou até 50, ela sequer saberia que fosse possível fazer isso e talvez teria pagado com a própria vida por ousar desafiar os homens da família.
Outro caso chocante aconteceu em Goiânia. Uma moça de 21 anos foi internada na UTI e durante a noite fora abusada pelo enfermeiro de turno. Logo pela manhã ela contou a uma enfermeira, que iniciava seu trabalho, o que havia acontecido. Que alívio senti por ela ter encontrado “a mulher certa”, pois se fosse outra, daquelas que militam pelo patriarcado, teria ignorado a denúncia. Essa enfermeira, então, comunicou à direção do hospital. E o que os homens da instituição fizeram? O hospital a demitiu e os dois médicos que atenderam a moça em seguida, segundo o inquérito da Polícia Civil do Estado, foram negligentes no atendimento e acusados de homicídio culposo, pois o laudo apontava, inclusive, uma lesão na traqueia da vítima. Patriarcado mata, minha gente, literalmente ou indiretamente, através do silenciamento de mulheres! E é absurdo que muitas mulheres rompam o silêncio para irem às ruas atacar a vítima, chamá-la ao conformismo e à sua função passiva de “maternidade” depois de um estupro, barganhando sua vida e dignidade por uma ideia hipócrita de “vida”. Isso é inadmissível!
O silêncio e a cumplicidade precisam ser rompidos por mulheres, porque os séculos mostraram que os homens não o fizeram e não o farão.
Mas a dura verdade é que a luta é também contra as “militantes”, aquelas engajadas na luta contra outras mulheres em troca de um “selo” de inclusão nessa cultura misógina.
Já passou do tempo de uma cultura onde educação sexual é prevenção e conscientização, não o problema. Já passou o tempo de denunciarmos, de acolhermos essas mulheres e de negar essas sessões baratas de psicologia, onde muitas profissionais inculcam nas vítimas a necessidade de perdoar seus abusadores muito mais que o sentimento de indignação e o desejo por justiça ou mesmo a preocupação em colocá-las à salvo.
Se a sociedade se engajasse tanto pela proteção de crianças e mulheres, pela legitimação dos relatos das vítimas, pela justiça e prevenção, pela acolhida de suas dores e traumas e pela exposição desses homens tanto quanto cobra delas o perdão e o silêncio, teríamos outro Brasil. Na teoria, todo mundo pede pena de morte, prisão perpétua, castração, quando o pedófilo é na família dos outros. Na realidade, quando se convive com ele, ou é o pai, o filho, o irmão, o marido, o papo é outro. Pedόfilo e estuprador ruim, sό fora dos muros da própria casa. E se revirarmos bem dentro das nossas, não será surpresa se descobrirmos que cada família tem um.
* Fabiane Albuquerque é doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e feminista negra.