A sommelier Sara Araújo é uma das três mulheres ofendidas por comentários racistas e misóginos em conversas vazadas em grupo de cervejeiros; empresários catarinenses e presidente da Abracerva estão entre os autores.
As sommelieres especialistas em cerveja, Fernanda Meybom (SC), Daiane Colla (SC) e Sara Araújo (PR) sofreram ataques racistas e machistas em troca de mensagens entre empresários do ramo cervejeiro. As conversas enviadas em um grupo no Whatsapp chamado “Cervejeiros Illuminati” tem cerca de 200 integrantes de todo o Brasil, em sua maioria homens. Além das ofensas direcionadas exclusivamente às três mulheres, os participantes ofendem a população negra em geral e as feministas. Entre eles aparecem empresários catarinenses e o presidente da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), Carlo Lapolli, que é de Blumenau.
São mais de 30 prints de conversas vazadas que demonstram a misoginia e o racismo escancarados de uma parte da população brasileira. O absurdo começa na foto do perfil do grupo representado por uma vagina, a imagem dá a entender que foi tirada de forma escondida debaixo de uma mesa. Segundo fonte entrevistada pela equipe do Portal Catarinas, esse tipo de comportamento realmente acontecia em concursos de cerveja quando havia presença feminina na mesa de juízes.
“Quando havia mulher que ia julgar uma cerveja tinham fotos dela por debaixo da mesa sendo compartilhadas neste grupo”, conta.
De acordo com a fonte, os administradores do grupo não deixavam ninguém sair do grupo. “As pessoas saíam do grupo e eles botavam de volta pra continuarem dando palco para os mais mais do grupo. Pro cara conseguir sair, ele tinha que ou brigar com alguém do grupo ou sair em meio a muitas mensagens e ninguém perceber”, relata.
Nas mensagens, a cientista social e sommelier Sara Araújo especialista em cerveja desde 2018 é alvo de racismo. Sara decidiu não se calar e denunciar o ocorrido. “Quando tive acesso às mensagens eu adoeci, precisei buscar ajuda. O racismo quando não mata, adoece suas vítimas”, desabafa Sara.
Nascida em Salvador e estudante de ciência políticas na Universidade Estadual de Maringá (PR), Sara comanda o perfil “Negra Cervejas Sommelier” (@negracervejassommelier) onde compartilha conhecimento sobre a bebida, a profissão e debate sobre a elitização da cerveja, enquanto observa poucos negros na área. “Eu tenho essa luta da educação antirracista dentro do meio da cerveja, de fazer uma narrativa de insurgência contra as opressões dentro desse mercado”, explica a sommelier.
Sara é sommelier de cerveja desde 2018 e decidiu se tornar especialista em cerveja por perceber que os negros só ocupavam a parte da limpeza e segurança nos locais de consumo e eventos. “A minha grande motivação em fazer o curso foi para ter mais um corpo preto nesse espaço que é tão brancocêntrico e para tentar conhecer pessoas como eu que amam e trabalham com cervejas. Passei a frequentar os eventos de cerveja onde era difícil ver sommelier mulher, sommelier negro, então eu entrevistava as pessoas nesses lugares. Perguntava se elas conheciam sommeliers negros, o que achavam da pouca representatividade negra no mercado”, conta Sara.
“Pela troca de experiência com uma negra? Quero. Não tenho nojinho.”, escreve o cervejeiro [nome retirado por decisão judicial] e completa, “[nome retirado por decisão judicial] vai dizer que elas têm aroma de cimento portland CPZII”, se referindo ao blumenauense [nome retirado por decisão judicial].
Como explica a advogada Flávia Lima, os homens podem responder por injúria racial qualificada. “No momento em que ofendem a honra dela enquanto mulher negra eles estão praticando injúria racial definido no artigo 140 parágrafo 3 do Código Penal. A injúria qualificada por motivo de raça e cor é uma forma de aumentar a pena de injúria, aumenta a pena de um para três anos. Além do dano moral porque estão difamando, estão ofendendo a imagem dessa profissional”, explica Lima.
Os ataques racistas também se direcionam à cervejaria gaúcha Implicantes, que tem como proprietários pessoas negras. A empresa lançou um financiamento coletivo para retomar a produção impactada pela pandemia. “O Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) autoriza uma cervejaria negra? Não tem que ser branca, facilmente lavável, inox, etc.?”, escreveu Guilherme Jorge Giorgi, sócio da cervejaria Kessbier, de Nova Mutum (MT).
Um dos integrantes chamado [nome retirado por decisão judicial] que possui telefone com DDD 47, de Santa Catarina, chega a citar o DOI CODI, o famoso centro de tortura da época da ditadura brasileira.
Depois do vazamento do grupo, [nome retirado por decisão judicial] escreveu: “Tá todo mundo aqui no grupo pronto para ir em cana? Ninguém solta a mão de ninguém”. Os integrantes passam então a ironizar a denúncia e fazer uso daquela velha história do racismo reverso (que não existe, aliás). Em um dos trechos, o presidente da Abracerva, Carlo Lapolli, chega a citar o nazismo.
Em reportagem divulgada pelo Fantástico no último domingo, o presidente da Abracerva, Carlo Lapolli, aparece dando entrevista sobre o caso da Sara. No dia seguinte, indignados, integrantes do grupo, vazaram trechos machistas do presidente. Na quarta-feira (2), Lapolli e mais dez diretores da associação renunciaram ao cargo.
E os ataques racistas não param por aí, no decorrer da conversa os empresários passam a verbalizar intolerâncias raciais de forma generalizada. Morador de Florianópolis, [nome retirado por decisão judicial], aparece ironizando a história dos negros escravizados.
“Quando eles falam de forma generalizada da descendência africana estão cometendo o crime de racismo propriamente dito, é um crime contra toda a população negra, por isso se encaixa na lei 7.716”, comenta Flávia Lima.
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Para Sara Araújo esse é o retrato do racismo estrutural no país que poucos conseguem enxergar. “O Brasil foi estruturado no racismo e se mantém por ele, as pessoas não negras estão mais preocupadas em não ser chamadas de racistas do que não ser racistas de fato. Silvio Almeida, Grada Kilomba, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento nos alertam pra isso, a sociedade brasileira precisa fazer esse debate urgente, de se encarar como um país racista que é e buscar mudanças, do contrário cenas como essas vão se tornar cada vez mais corriqueiras”, afirma.
“Falam pra mim que trabalho em uma área de homens, então devo estar acostumada a escutar isso. Acostumada a quê? A ser agredida?”
Especialistas em cerveja, as catarinenses Fernanda Meybom e Daiane Colla são sommeliers reconhecidas internacionalmente. Elas foram citadas e difamadas em outro grupo de whatsapp chamado “Cervejeiros – Oficial”, que tem como integrantes também empresários catarinenses.
Fernanda conta que passou a receber prints de conversas do grupo com conteúdos misóginos logo após publicar o artigo “A cerveja que não dói em mim”, na Revista da Cerveja. O texto é uma reflexão sobre o racismo no mercado da cerveja.
“Escrevi o artigo no sentido de que a gente, o branco privilegiado, não pode tomar atitudes como, por exemplo, usar a imagem do negro nos rótulos sem primeiro consultar e escutar a população negra. O artigo foi pro grupo de whatsapp e começaram o ataque à mim, à Sara e à Daiane”, conta Fernanda.
Em um dos trechos do texto publicado, Fernanda reflete: “Eu sei que esse não é meu lugar de fala, mas convido o leitor a refletir comigo (…): “Como opinar em algo que não dói em nós mesmos?”. Como, exatamente, eu ainda não sei, mas o fato de fazermos essa pergunta já nos ajuda bastante na reflexão de nosso comportamento, por muitas vezes racista.”
O assunto parece não ter agradado alguns dos participantes do grupo. O morador de Florianópolis [nome retirado por decisão judicial] que também faz parte deste outro grupo no whatsapp aparece negando que o problema do racismo seja do homem branco.
Os ataques racistas começaram principalmente porque um importante cervejeiro do mercado mundial, Garret Oliver, comentou sobre o artigo na rede social de Fernanda. Garret é negro e o grupo do whatsapp se dizia não racista porque admirava o trabalho dele e por ele nunca ter se colocado como vítima. Entretanto, ao compartilhar o comentário do mestre cervejeiro, o grupo deu início a uma série de comentários de cunho racista e misógino. O blumenauense [nome retirado por decisão judicial] aparece mais uma vez tecendo comentários de intolerância racial. O advogado e editor do site Brejas, Maurício Beltramelli, também.
“Eu sabia que existia machismo e ofensas naquele grupo. O que me chocou foi a violência das palavras e agressões. E eles tratam isso como bobeira. Piada de grupo tipo quinta série”, desabafa Fernanda. Em um dos trechos, Daniel Ropelato, funcionário da cervejaria de Carlo Lapolli, faz um comentário lesbofóbico.
Em um dos prints, Ropelato ainda faz um comentário xenofóbico.
O vazamento das conversas vem acontecendo há três semanas. De acordo com alguns citados, as conversas estão fora de contexto. “O print está completo, não foi editado. Alguns deles me procuraram para se justificar, mas eu não quero conversa porque estou num momento pessoal difícil. E estou cansada dessas coisas, não é a primeira vez que recebo esses ataques”, desabafa Meybom.
No caso de Fernanda e Daiane, a advogada Flávia Lima diz que pode ser enquadrado em injúria e até se encaixar na Lei Maria da Penha.
“Eles praticam o crime de injúria e também pode ser enquadrado até na lei de combate à violência contra a mulher. O que esses homens não sabem é que violência psicológica se enquadra na lei Maria da Penha”, afirma Lima.
Para vítimas de ataques como esses é difícil não se sentir atingida e menosprezada. “Eu senti raiva porque eu trabalho com engenharia química, além de trabalhar com cerveja. E é algo que todo mundo fala pra mim “ah, você deve estar acostumada…” Acostumada a quê? A ser agredida? A gente tem que se acostumar a isso? Não é a primeira vez, mas quando acontece é um baque. Não se torna mais fácil com o tempo porque a gente vê que as coisas não mudam. Eu chorei de raiva me dá vontade de largar tudo. Porque eles fazem parecer que é quase um ambiente que eu não deveria estar, fico com a sensação de que eu sou uma intrusa, de que aquilo ali não me pertence”, afirma Fernanda.
Episódios dessa magnitude ganham força à medida que o conservadorismo aumenta no mundo, porque as pessoas parecem se sentir mais à vontade em despejar o ódio. Para a advogada Flávia Lima, o principal nisso tudo é denunciar. “Tem que denunciar independente do resultado porque é uma forma de combater este tipo de atitude. A denúncia faz com que essas pessoas se incomodem, elas passam por um episódio vexatório e repensam seu comportamento”, finaliza.
Repercussão
O vazamento das conversas chocou comunidades cervejeiras e entidades do setor no Brasil e no exterior. Diversas notas de repúdio foram divulgadas durante a semana.
https://www.instagram.com/p/CEkqj6cpb95/
https://www.instagram.com/p/CEm7gbzMQ0K/
A Revista da Cerveja em que Fernanda Meybom é colunista também divulgou nota em que repudia os ataques sofridos pelas sommeliers.
Já na Abracerva, após a renúncia do presidente, Nadhine França, então diretora
do Núcleo de Diversidade da associação, assumiu o comando interinamente.
Uma nova eleição será convocada para o dia 15 de outubro.
*Caso a leitora ou leitor tenha atualizações sobre o caso, nos envie em [email protected]