Tânia foi símbolo da negligência em 2020, ao ser considerada morta pelo Governo Federal. Depois de cinco meses e de sua história ganhar destaque nos jornais, ela recebeu a primeira parcela do auxílio emergencial no ano passado.

Ela representa milhares de outras histórias do Brasil. Afinal, este é o país da desigualdade e da negligência para cuidar da vida, da alimentação e da sobrevivência dos mais pobres. Não, coincidentemente, Tânia é uma mulher negra e mãe-solo.

É uma das inúmeras brasileiras que se inscreveu, pelo aplicativo, para receber o auxílio emergencial nos primeiros dias de abril de 2020. Na esperança de cuidar do filho e da sua saúde, desempregada e contando com esse dinheiro para viver, Tânia tem a primeira resposta do governo e a surpresa: benefício negado porque estava morta!

Como assim? Morta? Sim, aquela mulher estava morta aos olhos do governo!

Desesperada, começou sua sina de porta em porta nos órgãos públicos competentes para mostrar que estava viva. Mas essa peregrinação só gerou frutos cinco meses depois, quando, em 21 de setembro do ano passado, recebeu a primeira parcela do auxílio emergencial no valor de R$ 600.

De setembro a dezembro de 2020, foi beneficiada. Agora, em 20 de abril, mesmo estando desempregada e morando na casa de amigos “de favor”, descobre que não vai receber o benefício na nova rodada. Segundo o Ministério da Cidadania, seu pedido foi indeferido “por descumprimento dos critérios legais”. No processamento, o sistema identificou que o filho de Tânia, integrante do grupo familiar dela, tem renda superior a meio salário mínimo por pessoa.

De acordo com a legislação, a família com renda superior a meio salário mínimo por pessoa não é elegível ao benefício, mesmo que a renda total da família não ultrapasse três salários mínimos por mês.

Mas o que o sistema diz não tem respaldo na realidade de Tânia, assim como na de milhares de brasileiros. Seus dados são relegados aos cruzamentos mais perversos. Cruzamentos marcados pela negligência, pelo abandono e pelo descaso com a população brasileira. Para ela, assim como para milhares de pessoas, nem há a possibilidade de recorrer da decisão.

Prova disso é que na virada do mês, de junho para julho, mais de 1 milhão de beneficiários foram bloqueados – mais de 660 mil em decorrência de irregularidades pela Controladoria-Geral da União (CGU) e mais de 400 mil em função da revisão mensal. Mas quais são esses critérios? Sabemos que centenas de mães-solo, mesmo fazendo jus, foram igualmente bloqueadas.

Os sistemas de cruzamento de dados são desatualizados. Mais do que isso, tornam-se cruéis justamente por estarem tão defasados. Para agravar, no auge da pandemia a verba destinada ao auxílio foi reduzida drasticamente e imposto o teto de R$ 44 bilhões, capaz de excluir pelo menos 27 milhões de pessoas. No Programa Bolsa Família, se tínhamos 19 milhões de beneficiados em 2020, neste ano serão apenas 10 milhões.

Para caber nas regras e nos números do governo, milhares, como a Tânia, foram excluídos injustamente – mesmo que isso signifique ampliar a realidade da fome e da miséria para eles e para o país.

Como definir quem, entre os mais pobres e miseráveis, deve ficar de fora? Como escolher quem pode e quem terá direito de comer? Como fazer a escolha que condena alguém à fome e o outro à mínima chance de sobreviver com parcos recursos?

Enquanto outras nações se empenham em proteger seus cidadãos da fome, nossos governantes, alheios ao que acontece além das fronteiras de Brasília, ignoram que somos o país mais desigual do mundo e que vivemos a maior calamidade sanitária de todas as nações e da nossa própria história.

Acumulamos recordes de mortes diárias por Covid-19, de brasileiros em situação de fome (19 milhões) e de insegurança alimentar (117 milhões). São esses números que transferem o olhar dos demais países para o Brasil.

Somente quando enxergarmos com disposição política verdadeira a necessidade de fazermos uma profunda reforma tributária, investirmos em educação pública de qualidade e em reduzir as desigualdades, sem populismo, seremos capazes de ter uma sociedade mais justa e igualitária. Não há mais espaço para quem flerta descaradamente com o autoritarismo nem para as políticas de escambo. O povo está cansado.

Quando a pandemia passar, a panela vazia pela falta de comida vai ser uma lembrança forte nas urnas. Não deixaremos ninguém esquecer dos mortos, das Tânias que ficaram sem auxílio – que hoje, ainda sem esse benefício, cata latinhas para tentar sobreviver –,  como também faremos questão de relembrar as sequelas que esta fase vai deixar.

Em tempo: Tânia continua bloqueada e talvez sua única saída seja a via judicial.

* Paola Carvalho é diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), uma das integrantes da campanha Renda Básica que Queremos.

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  • Paola Carvalho

    Assistente social, especialista em Gestão de Políticas Públicas na perspectiva de gênero e promoção da igualdade racial,...

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