Após um parto sofrido com vômitos, fraqueza e medicação para controle da pressão, a auxiliar de escritório Karine Nunes, 26 anos, não pôde pegar a filha no colo. Ana Clara faleceu 35 horas depois do nascimento na Maternidade Carmela Dutra, em Florianópolis. A certidão de óbito indicou hemorragia nos pulmões e falta de oxigênio durante o parto. Mesmo com o laudo do médico que a acompanhou durante toda a gestação indicando a necessidade de cesariana devido à sua saúde e tamanho do bebê, segundo Karine, os plantonistas afirmaram que tais condições não justificariam uma intervenção cirúrgica. O caso aconteceu quatro dias antes da sanção da lei da violência obstétrica em Santa Catarina. A Secretaria de Estado da Saúde informou em nota que a Comissão de Óbito da Maternidade Carmela Dutra está apurando o caso.
“A tua pressão está alta porque você está acima do peso. O teu médico não falou que você não poderia engordar 25 quilos? Se o teu médico orientou a realização da cesárea, ele deveria ter feito”, disse o médico residente que fez o atendimento inicial à Karine, conforme relata a paciente.
Ela conta que a médica plantonista fez o exame de toque e identificou que o bebê estava “preso”. Após fortes contrações, a médica informou que ocorreu a chamada distocia de ombro, quando a cabeça do bebê passa, mas o ombro fica trancado. “A médica me disse ‘mãe a gente não pode deixar tua filha ali por muito tempo, mesmo sem contração você terá que fazer força’. Duas enfermeiras seguraram minhas pernas e três subiram em cima da minha barriga para empurrar a minha filha, enquanto a médica colocava a mão para puxar. Depois pediram para eu ficar de quatro, foi quando minha filha nasceu”, detalha. O relato de Karine se aproxima de procedimento manobra de “kristeller” – que consiste em segurar as pernas da mulher e fazer pressão em cima da barriga para forçar o nascimento – considerada violenta pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e Ministério Público Federal (MPF).
O bebê teve um dos braços fraturados e sofreu uma parada respiratória. Após massagem e medicação para que o coração voltasse a bater, foi levado para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Karina logo foi informada que o quadro de saúde de Ana Clara era grave e que mesmo se sobrevivesse ficaria com sequelas. “Ela não chorou. Nem me mostraram no nascimento, só peguei no colo quando já estava em óbito. Foi tudo muito triste”, conta a mãe. A vítima fez um registro de ocorrência e contratou um advogado para cuidar do caso. Ela tem um filho de 8 anos que veio ao mundo por meio de um parto normal.
Por telefone, o hospital informou que somente a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Saúde iria repassar informações sobre o caso. A assessoria, por sua vez, enviou a seguinte nota por e-mail: “A Secretaria de Estado da Saúde abriu uma sindicância interna por meio do Serviço de Obstetrícia da Maternidade Carmela Dutra para investigar o fato relatado pela Sra. Karine Nunes. A Comissão de Óbito da Maternidade Carmela Dutra está apurando todos os fatos ocorridos no dia 13 de janeiro de 2017.”
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Cesariana é ainda mais arriscada
Após a morte do bebê, profissionais da maternidade reiteraram à paciente que o procedimento cirúrgico acarretaria mais riscos, principalmente a sua saúde. “Eles disseram que havia um risco grande em fazer cesárea porque eu poderia sofrer hemorragia e perder o útero. Porém, eu preferia perder o útero a perder a minha filha”, afirma Karine.
A ginecologista-
Para Gabriela Zanella, presidenta da Associação da Doulas de Santa Catarina (Adosc), o imaginário coletivo criado em torno da costumeira prática da cesariana faz com que médicos e gestantes “optem” de imediato por esse tipo intervenção, mesmo quando o parto normal é a alternativa mais saudável para mães e bebês.
“As mulheres não têm informação de qualidade para que possam optar e discutir com a equipe que vai atender o parto. As equipes, por sua vez, não estão acostumadas a acolher as necessidades das gestantes, especialmente emocionais”, destaca a doula. Ela argumenta ainda que as violências obstétricas cometidas durante o parto normal são comuns, mas só são identificadas quando acometem a saúde do bebê – como neste caso.
Lei sobre violência obstétrica
Está na lei estadual que é violência obstétrica “(…) recriminar a mulher por qualquer característica ou ato físico, como por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros”. Além de ter as pernas seguradas pelas enfermeiras e ser submetida à manobra agressiva, Karine não pôde beber água durante o trabalho de parto, não teve liberdade de movimento e escolha da posição para parir. A indicação de cesárea, sem que realmente houvesse necessidade, pelo médico que acompanhava sua gestação também pode ser considerada uma violência, conforme a lei.
Sancionada em 19 de janeiro deste ano, a lei 17.097 prevê que o Estado deve garantir às gestantes informação e proteção contra esse tipo de violência. O texto tipifica a violência, porém não trata da punição. Os responsáveis podem responder ação penal e cível indenizatória, além de processo administrativo na unidade hospitalar e nos conselhos de classe.
O texto cita as formas mais comuns de violência em 21 parágrafos e pode ser utilizada como base para ações judiciais, como explicou Mariana Mescolotto, assessora jurídica da Adosc, em entrevista após a aprovação do projeto. “Vai ajudar a efetivar indenizações contra esse tipo de prática, tanto contra profissionais de saúde, quanto instituições. E claro, esperamos que haja fiscalização do Estado em relação às práticas inadequadas”, afirma.
Atualizada às 23h03 de 8 de fevereiro.