Os desafios para a construção de empresas mais diversas

Durante os primeiros meses trabalhando em uma multinacional, o regime de home office – necessário ao longo da pandemia de coronavírus – limitou o contato de Luana* com os novos colegas. Restringida ao seu time, levou um tempo para que ela refletisse sobre o quadro de funcionários que passou a integrar. 

A empresa, cujo nome não iremos citar para garantir a segurança de suas ex-funcionárias, é famosa em todo o país, tendo inclusive uma espécie de fã clube. Nas suas redes sociais, influenciadores negros, PCDs e/ou LGBTQIA+ são protagonistas de diversos posts, onde estampam largos sorrisos. No início de 2022, com o retorno do trabalho presencial, Luana se espantou ao não encontrar tamanha diversidade entre os colaboradores. 

A diversidade celebrada nas mídias sociais se restringe a estes espaços. Na vida real, no dia a dia da empresa, pessoas negras, PCDs e LGBTQIA+ são minoria. No geral, as políticas voltadas para a tal diversidade se resumem a palestras superficiais e ebooks listando termos que devem ser evitados. 

Longe dos olhares dos seguidores e iminente risco de cancelamento, como nos casos XP e Nubank, o ambiente interno de muitas empresas é bem menos acolhedor do que aparenta ser. Para Fabiane*, colega de Luana, a passagem pela multinacional foi marcada por racismo e hipocrisia. 

Mulher negra com mais de uma década de experiência na sua área, não foi preciso muito tempo para que compreendesse que os cargos de gerência e liderança eram repletos de uma falsa preocupação com inclusão. 

Durante sua estadia na empresa, além da repressão que ela mesmo enfrentou em diversas reuniões, Fabiane viu colegas negros sendo assediados moralmente por líderes responsáveis pelo setor de diversidade e inclusão. Uma das frequentes formas de violência sofridas por Fabiane e seus colegas era a estagnação profissional. 

“Ela ia contratar uma pessoa pra ser líder da área, uma coisa que eu poderia fazer tranquilamente. Mas pra ela eu não era boa o suficiente. É um racismo muito sutil: nenhuma das pessoas negras estava preparada ou era boa o suficiente. Hoje trabalho em uma empresa ganhando 30% a mais, fazendo tudo que ela disse que eu não podia fazer.” 

Benefícios visíveis

O ambiente vivenciado por Fabiane é um cenário comum em empresas por todo o país, e traz consequências significativas para o desempenho de funcionários que integram grupos marginalizados pela sociedade – além de afetar a saúde da empresa no geral.  

Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje), em 2019, aponta que 47% das empresas declaram que investimentos em programas de diversidade resultam em soluções inovadoras para o negócio. 

Outro estudo, realizado por Michael Page no mesmo ano, reforça o impacto da diversidade e inclusão na performance financeira das empresas: quando constituídas por equipes de direção mais inclusivas, estas registam um crescimento de 19% nas receitas.

Em empresas voltadas para tecnologia, como startups, onde a inovação é um fator-chave, os benefícios são ainda mais visíveis – decisões tomadas por equipes gestoras mais diversas e inclusivas atingem 60% de resultados positivos.

Apesar da variedade de dados demonstrando a importância de programas de diversidade e inclusão no ambiente corporativo, muitas empresas ainda não estão efetivamente conseguindo implementar estas políticas. Por que isso acontece?

Para a historiadora e consultora Wania Sant’Anna, são diversos os desafios. Internamente, é preciso o comprometimento de todos os funcionários: dos cargos de liderança aos funcionários que efetivamente operacionalizam as funções da empresa. Se a implementação da diversidade e inclusão não for objetivo em comum entre estes setores, ela não será efetiva.

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Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Com mais de 20 anos de experiência com condução de Programas em Ambientes Corporativos, Wania pontua que para que isso seja possível, é preciso considerar  a diversidade e a inclusão como métricas de desempenho, principalmente para os profissionais que atuam nos grupos intermediários, como os cargos de gerência. 

“É preciso que haja métricas muito efetivas de resultado. Você tem que trazer a política de diversidade, de alguma maneira, para os custos operacionais do negócio. Todo CEO deve ser interpelado sobre os resultados econômicos das empresas que eles comandam. Mas, as perguntas relacionadas à composição do perfil da sua empresa devem ser tão importantes quanto os resultados operacionais dela.” 

Compreender as fases de maturação necessárias para a efetividade de um programa de diversidade também é fundamental. Não existem atalhos para compor uma força de trabalho que esteja comprometida com os princípios de diversidade e inclusão. 

Não há formas de fazer isso de maneira imediata, visto que a simples contratação de pessoas negras, LGTBQIA+ e PCDs não soluciona o problema. Para além de recrutamento e seleção, é preciso organizar um ambiente que fomente a permanência e o crescimento destes profissionais diversos na empresa. 

“O que eu vejo é um imediatismo extraordinário para se ter resultados em relação a ‘eu tenho’. Mas você tem exatamente o quê? Não me espanta, de maneira nenhuma, que as coisas não deem certo. Dependendo da forma como um programa nasce e se desenvolve, as chances de dar errado são muito maiores do que de dar certo.”   

Como exemplo, Wania menciona o caso da Magazine Luiza: a empresa está na terceira turma do programa de trainee voltada exclusivamente a pessoas negras. Porém, o debate sobre equidade de raça e gênero é pauta prioritária para Luiza Trajano, CEO da empresa, desde 2007. Assim, foram mais de 10 anos para a implementação da política, que hoje é exemplo de efetividade.  

O cenário no Brasil

Além das questões de organização interna, a implementação de programas de diversidade e inclusão enfrentam fatores externos muito poucos discutidos, como os diversos estigmas sociais que permeiam a sociedade brasileira. 

Nenhuma empresa está imune ao racismo, transfobia, capacitismo e outras formas de opressão, fatores que impactam diretamente as relações de trabalhos de todos os âmbitos.

“As políticas de diversidade caem nesse terreno de percepções muito consolidadas da gestão de pessoas, que valora negativamente determinados segmentos, como as mulheres, os negros, os PCDs, os que tem mais idade, ou os que passaram por muitas experiências profissionais”, pontua Wania. 

Para ilustrar essa dinâmica, podemos citar um dos exemplos mais comuns: o mercado de trabalho exclui mulheres que têm filhos pequenos. A discriminação é ilegal, o que não significa que deixe de existir. Quantos profissionais de recursos humanos pontuam negativamente candidatas que são mães, dando preferência às que não são?

Para a consultora, muitos empregadores não refletem que, para além de cumprir a legislação, empregar estas mulheres impacta na perspectiva de futuro de toda uma família. “Não se faz avaliação que, além das habilidades que aquela trabalhadora tenha, o fato dela ter filhos e de ser uma mulher empregada, pode contribuir significativamente para o bem-estar daquela família, e para a segurança daquelas crianças”.

Como uma das inúmeras consequências de sermos a última nação a abolir o trabalho escravo, o trabalho no Brasil tem uma herança escravista forte, de desrespeito imensurável. Em 2022, ainda são denunciados inúmeros casos de trabalho análogo à escravidão. 

Não buscar compreender como essa cultura afeta o mercado de trabalho faz com que muitas empresas não questionem suas escolhas de contratação, promoção e demissão, mantendo um cenário que isola e reprime profissionais negras/os.

Jornada solitária

Durante toda sua trajetória profissional, a linguista Camila Tito se deparou com a solidão. Era a única mulher negra do setor, da companhia, do departamento, ou da empresa. Após dez anos atuando com educação e administração, hoje Camila reflete o quanto este ambiente isolado a limitou como profissional. 

“Eu ficava sempre com o cabelo preso. Não é que eu não podia, mas eu não me sentia à vontade de soltar, eu não sabia como seria a reação, porque eu não tinha outra de mim. Eu sempre estava muito retraída, muito quieta.”

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Imagem: arquivo pessoal.

Mesmo sem ataques diretos, uma empresa composta majoritariamente por pessoas brancas gera um ambiente que deixa profissionais negros em um cansativo estado de alerta. Estes podem deixar de participar de eventos, de ser ativos nas reuniões, de buscar construir a inovação junto ao coletivo, pois têm medo de errar. 

“Quando o ambiente é preconceituoso, a pessoa não se desenvolve. Ela não aprende mais, ela não produz mais, porque é um ambiente que faz com que você fique retraído, fique quieto. Você é silenciado sem ninguém te silenciar. Por ser um ambiente hostil, você é silenciada. Porque é só você ali.”

Camila, que hoje atua como consultora na área de diversidade, reafirma que o comprometimento das empresas com estes princípios, além de impactar na produtividade e desempenho de seus colaboradores, traz impactos para toda a sociedade. 

O Brasil é diverso, isso é um fato. Clientes, consumidores e colaboradores de cada empresa representam a população brasileira. Por isso, além do crescimento financeiro gerado, a longo prazo, pela adoção de políticas de diversidade, ter um ambiente diverso é corresponder a uma sociedade que é naturalmente diversa. 

Josephine Santos, gerente de recursos humanos que já liderou programas de diversidade em multinacionais, como Uber e Amazon, concorda. Quando se busca construir um ambiente diverso, é preciso ir além de recrutamento e seleção. 

“Essas pessoas precisam se sentir bem onde elas estão trabalhando. Precisam se sentir representadas, olhar para cargos de diretoria e gerência e se ver lá, ver pessoas parecidas com elas. Isso faz com que as pessoas se sintam parte daquela empresa”, explica. 

“A criação de um ambiente inclusivo, seguro, que respeita as pessoas da forma que elas são e pensam, é fundamental para construção de uma cultura empresarial muito forte, além da retenção de talentos.” 

Além da mão de obra

O primeiro passo para a efetividade da implementação de programas de diversidade é a empresa admitir que o problema existe – e se a diversidade se restringe a posts do Instagram, sua empresa não é diversa.

É preciso olhar para as vagas disponíveis, seus pré-requisitos e refletir sobre que perfil eles atingem. Também é preciso olhar ao seu redor: qual é o quadro atual da empresa? Quantas pessoas de cada gênero, orientação sexual e raça trabalham no seu time? Quantas pessoas com deficiência integram a equipe? Apenas a porcentagem exigida por lei?

Quando se compreende qual é a situação atual da empresa, em que realidade ela se insere, é preciso definir metas, objetivos e estratégias para atingir a equidade. E isso não sai de graça – a diversidade tem custo, e ele é alto. 

Wania cita alguns exemplos que conheceu nas empresas que trabalhou, e que extrapolam a fase inicial de recrutamento. Day off – uma folga remunerada – no dia do aniversário dos filhos, day off no Dia dos Pais e Dia das Mães; programas de formação para as novas gerações, como a entrega de livros em datas significativas, além de planos de saúde e auxílio creche. Tudo isso entra na conta de uma política de diversidade.

Porque a política de diversidade vai além de cotas – mesmo que estas sejam fundamentais para a construção de um ambiente seguro e diverso. É preciso trabalhar para que seus colaboradores, novos e antigos, se tornem sujeitos conscientes da diversidade humana e cultural. 

Política de diversidade é reconhecer o seu funcionário como pessoa, cidadão, pai, mãe, filho. É ver além da mão de obra: existe ali uma pessoa, com relações de parentalidade e conjugalidade. 

Boas práticas empresariais

Comprometer-se com a diversidade e inclusão é estar comprometido com o respeito aos direitos humanos, como pontua a publicação “Implementação dos princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos: Boas Práticas Empresariais”, formulada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2021.

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Imagem: reprodução.

Os princípios orientadores da ONU são preceitos considerados como padrão global de conduta em ambientes corporativos. Eles definem que todas as empresas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos, agindo com diligência para identificar e prevenir violações. 

Este documento traz uma série de procedimentos que buscam auxiliar uma empresa a tornar seus processos mais inclusivos e suas equipes mais diversas. Após compreender quais são suas carências e oportunidades nesse sentido, o primeiro passo é se comprometer publicamente com o respeito aos direitos humanos, mostrando quais as metas e expectativas definidas para este objetivo.  

Esse compromisso deve ser refletido em políticas e procedimentos operacionais necessários para incutir o compromisso em toda a empresa.

“Respeitar os direitos humanos, neste sentido, significa assegurar que as dinâmicas de exclusão e os episódios de preconceito e discriminação sejam continuamente prevenidos e reparados”, diz trecho do documento.

Em sequência, com o auxílio de especialistas em direitos humanos, deve-se desenvolver uma avaliação interna para compreender os “impactos negativos que a empresa pode causar ou contribuir através de suas próprias atividades, ou que podem estar diretamente ligadas a suas operações, produtos ou serviços por suas relações comerciais”. Orienta-se que este processo de análise seja contínuo, mesmo com mudanças em suas operações ou contextos operacionais.

Após a identificação, a empresa deve avançar para o desenvolvimento de ações e na adoção de medidas capazes de mitigar os impactos negativos – a curto, médio e longo prazo. 

Este plano de ações deve conter metas de desempenho que permitam mensurar a eficácia das atividades desempenhadas. Os resultados obtidos devem ser comunicados de forma eficaz para todas as partes interessadas, principalmente as envolvidas. 

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  • Gabriele Oliveira

    Estudante de Jornalismo (UFSC) dedicada à escrita de reportagens, com foco na cobertura de direitos humanos. Estagiária...

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