Por Elaine Tavares*

Hoje, primeiro de setembro, acordamos com um gosto amargo na boca. Deu-se o golpe. E, o mais dolorido, temos de conviver com o aplauso de velhos companheiros de luta, que se rejubilam pela queda de Dilma e do PT. Posso entender, mas quero dialogar.

Conspiro de todos os argumentos daqueles que dizem que o governo de Dilma era um governo neoliberal. Era. Jamais guinou à esquerda. Sua única qualidade era ter um verniz social que, não obstante ser só um verniz, significou a mudança de vida para milhões de pessoas.

Impossível negar isso. Alguns dirão que foi só um remédio para o monstro e que atrasou a revolução. Concordo em parte, porque afinal, para quem passa fome, ter o que comer e o que dar de comer aos filhos faz uma diferença abissal, inclusive para poder pensar em revolução.

Também conspiro da ideia de que para os empobrecidos, os negros, e tantos outros grupos específicos da classe trabalhadora, o “golpe” sempre esteve aí, seja no governo Lula ou Dilma. Na verdade começou lá no 1700, com o modo capitalista de produção. A lei, a Constituição e tudo mais que hoje se levanta para referendar que sim, foi um golpe o que aconteceu ontem, nunca serviu para essa parcela da população, sistematicamente assassinada, encarcerada e vilipendiada.

Mas tem um detalhe aí. Se para os trabalhadores a lei nunca serviu, agora uma boa parcela da sociedade pode ver e sentir na carne, o que é rotina para nós. Inclusive os políticos que se sentiam seguros na aba do poder. Não há lei capaz de deter a classe dominante nos seus desejos. Por isso a luta, sempre viva e renhida.

Tudo isso dito, penso que o momento o qual vivemos pode ser um tempo pedagógico. Realizar uma autocrítica, reconhecer os equívocos, desenhar novos mapas.

Só que para isso há que se ter generosidade  para com os companheiros e companheiras que se perderam no caminho. E digo isso, justamente por ter vivido o processo inverso.

Quando Lula lançou a carta aos brasileiros e escolheu um empresário do campo produtivo nacional para vice na chapa que concorria a eleição presidencial em 2003, já se sabia que – caso vencesse as eleições  – não seria o governo com o qual sonhamos e pelo qual lutamos uma vida inteira. Muita gente que estava filiada ao PT saiu do partido nessa época e os simpatizantes ficaram à espera, para ver o que passaria.

Vieram as eleições e veio a vitória. Três meses depois muitos de nós já estávamos na rua, lutando contra a reforma da Previdência proposta pelo então presidente, que retirava direitos dos trabalhadores. Aquele seria um governo contra o qual teríamos ainda de travar largas batalhas. Nunca nos furtamos. Naqueles dias eu estava na direção do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e, com meus companheiros e companheiras, pagamos um preço bem alto por imediatamente passar à crítica feroz contra as medidas que iam contra os trabalhadores e contra todos os princípios pelos quais lutáramos.

Perdemos amigos de anos, fomos acusados de fazer o jogo da direita, fomos  xingados e amaldiçoados.  Não foi fácil, mas seguimos na crítica, desvendando todas as armadilhas e todos os problemas que se colocavam na proposta de conciliação de classe e na cooptação de importantes lideranças do movimento popular. Denunciávamos a domesticação dos sindicatos e dos movimentos, gritávamos aos quatro ventos os problemas e desenhávamos os cenários que poderiam vir caso tudo seguisse como estava. Fomos um dos primeiros sindicatos do estado a se desfiliar da CUT e apontamos cada equívoco produzido, fazendo a crítica fundamentada e pela esquerda. Buscando sempre contribuir, nunca destruir.

Foram tempos duros, de lutas divididas, greves doloridas, perdas pessoais. Velhos companheiros apontavam o dedo para nós  – “direita, direita” – em vez de para o governo. Aguentamos o tirão, pois, desde sempre, nosso compromisso foi com a classe trabalhadora e se o governo não avançava nas pautas, era nossa obrigação ética lutar contra ele, fosse de qual partido fosse.

Agora, findo o tempo do PT no governo, temos duas opções no trato para com esses nossos velhos compas: uma é agir como agiram conosco, apontando o dedo, raivosamente, cuspindo e tripudiando da experiência desastrosa da qual fizeram parte. A outra é fazer diferente. Como gostaríamos que tivesse sido conosco. Acolher, abraçar, consolar e com eles e elas realizar a análise dos dias.

Claro que estou falando aqui daqueles e daquelas que sabemos não serem corruptos, nem chupins do público. As gentes crédulas e honestas que acreditaram ser possível avançar dentro dos moldes construídos pelo petismo. Os que contribuíram para que as políticas públicas chegassem aos empobrecidos, os que piamente acreditaram que, unidos com a burguesia esclarecida,  poderiam caminhar para dias melhores para toda a classe.

Pode ser uma atitude ingênua, jesuânica ou moralista, mas é assim que penso a vida. Todo aquele que erra tem chance de rever seus equívocos, fazer autocrítica, acertar o rumo. Quantas vezes nós mesmos nos vimos assim, nessa posição, de termos feito uma grande cagada. Se tivéssemos tido o abraço firme dos compas, talvez pudéssemos ter atravessado a tormenta melhor agasalhados.

Agora vêm aí tempos duros. Serão, certamente, mais duros do que no petismo, principalmente para a classe trabalhadora. Então, será hora de unir forças. Não com os ladinos, os mal-intencionados, os carrapatos do poder. Mas como nossos velhos compas, os da boa cepa, que se equivocaram, mas sem má-fé. Para eles, temos de estender a mão, porque há muito para reconstruir.

*Jornalista. Humana, demasiado humana. Filha de Abya Yala, domadora de palavras, construtora de mundos, irmã do vento, da lua, do sol, das flores. Educadora, aprendiz, maga. Esperando o dia em que o condor e a águia voarão juntos, inaugurando o esperado pachakuti.

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