Por Cristiane Brasileiro*

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(C.D.A.)

Logo depois do discurso de Dilma, no Senado, um artigo recém publicado pela Folha de São Paulo me chamou a atenção: nele se compara diretamente a fala da presidenta eleita com a famosa carta-testamento de Getúlio Vargas.

Verdade que 72 anos já separam os dois textos. Ainda assim, talvez seja possível compreender o impulso que moveu essa comparação: de fato, são dois discursos históricos apresentados em momentos dramáticos da política nacional, e por duas figuras presidenciais fortemente acuadas.

Na análise da Folha, o título aponta apenas para o fato de que Dilma usou “8 vezes mais palavras que a carta de Getúlio”, e já adianta a conclusão: isso teria “diluído o impacto” do mesmo. Retomando, então, o impulso do artigo da Folha, faço aqui minhas próprias observações a respeito.

Como nota a jornalista da Folha, a carta de Getúlio foi muito “mais pessoal” que o texto da Dilma, o que foi percebido pelo uso três vezes mais frequente dos artigos “eu”, “meu” e “minha”. Devo notar, a esse respeito, que de fato, no texto de Dilma, esse foco autocentrado se abre, como explicita inclusive o trecho final de sua fala: “O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.” A diferença de enfoque, então, fica notável: o discurso ultrapersonalista de Getúlio se acanha diante de outra abordagem política que pede, acima de tudo, atenção e respeito à sociedade como um todo. E mais, eu diria: o texto de Dilma se dirige desde a abertura a figuras concretas que participavam do seu julgamento e, ao mesmo tempo, se dirige à população inteira do país. Nesse sentido, devemos nos lembrar: o texto de Getúlio é escrito como uma carta pessoal quase que de si para si mesmo, e só ao fim se dirige diretamente a um destinatário identificado por “vós”; o texto de Dilma, ao contrário, é pronunciado publicamente, em voz alta, no senado federal, como a última chance de defesa pública e oficial da presidenta eleita diante de um processo de impeachment. Um texto se refere a “forças e interesses contra o povo”; o outro se dirige diretamente aos representantes desses interesses e também aos que se opõe a eles, e nomeia claramente vários desses possíveis interlocutores.

Chama a minha atenção, ainda, outro aspecto da comparação: ambos os discursos repetem quase que obsessivamente a palavra “não”. Acuados e pressionados ao extremo, o presidente e a presidenta se encontram na força política que pode e deve haver na negação. As diferenças que emergem a partir daí, no entanto, são fascinantes: palavras inexistentes no horizonte de Getúlio aparecem com força total no discurso de Dilma: só na fala dela estão presentes as palavras “democracia” (15 vezes); Constituição (14), “legitimidade (8), “pretextos” (6), “tortura” (5), “injustiça” (4), “chantagens” (3) e “retórica jurídica” (2). Se não fosse por mais nada, só por esse novo campo semântico já se veria a imensa distância entre os dois momentos históricos. No entanto, o discurso de Dilma vai mais longe: por um lado, fala claramente em “ética”, “traição”, “covardia”; por outro lado, surpreende registrando, mesmo num momento como este, as palavras “energia”, “serenidade”, “carinho”, “flores”, “solidariedade”, “resiliência”. E ainda nos traz estas outras novidades históricas notáveis, encarnadas em palavras que até há pouco tempo seriam quase impensáveis em discursos políticos, tais como “misoginia”, “preconceito”, “mãe”, “avó”.

Nesse ponto, aliás, salta aos olhos o impacto da emergência de novos sujeitos políticos no cenário político nacional: enquanto Getúlio só fala em “povo”; Dilma fala setes vezes em “mulheres”, e sempre se refere a senadores e senadoras, brasileiros e brasileiras, cidadãs e cidadãos. Como nota a jornalista da Folha, Getúlio ignorou, no seu discurso, as referências diferenciadas a mulheres ou homens. Longe disso ser uma marca de universalidade, no entanto, o que fica evidente é que ele assume a referência universal como recurso retórico que sufoca a diversidade de vozes que de fato compõem a sociedade, como que pairando acima dos sujeitos históricos concretos e ignorando os abismos tão evidentes que existem entre as experiências históricas de homens e mulheres.

Por fim: notemos que um discurso aposta no autossacrifício como cartada final; o outro é o discurso que reafirma a força da vida, e se dá, ainda, numa dinâmica de luta. Não por acaso, num aparece com grande destaque, por duas vezes, a palavra “sangue”; no outro abundam em nove aparições as palavras “resistir”, “resisto”, “resistência”. Não por acaso, também, um discurso se encerra rápido, fulminante, fatal, lacrador; o outro se prolonga retomando a narrativa da nossa história recente, detalhando os fatos que geraram o processo de impeachment, respondendo mais uma vez às acusações feitas. Um é um discurso de despedida em vários níveis; outro é um discurso de afirmação da vida, apesar de todos os pesares.

Pois então: essa resistência vital não se traduz num discurso mais longo porque nasce de algum tipo de “verborragia feminina”, mas porque dá mesmo muito mais trabalho, se dedica mais seriamente a tecer argumentos e explicações, se prolonga por caminhos por vezes tortuosos, desafia o nosso enorme cansaço e os próprios limites da arena pública. Mas devemos nos lembrar, ainda esta vez: essa resistência não termina quando um discurso se encerra. E nem morre. E nem se mata.

*Mineira que vive no Rio há quase 15 anos. Doutora em Literatura, professora na área de Linguagem e coordenadora da Fundação Cecierj. Mãe de dois.

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