Sete mulheres e o cuidado que um marido não ofereceria
Bárbara Li Sarti inaugura uma série de crônicas com texto em que explora a relação afetiva com as mulheres de sua família, fundamentais para seu desenvolvimento emocional e social.
Com seu chicote de couro de quase três metros, sob os olhares julgadores da vizinhança, ela passava o tempo treinando mira nas folhas das árvores da rua pouco movimentada ao lado de casa. Da sala, ouvíamos o estalo das chicotadas. Minha mãe era uma figura exótica para uma cidade interiorana nos anos 1990.
Aos três meses da minha gestação, meu pai faleceu. Depois dele, ela teve poucos parceiros. Nunca falava sobre suas paixões, conflitos ou o que quer que estivesse se passando no íntimo de sua vida amorosa.
Também não falava sobre como seria ou deveria ser, minha futura vida amorosa, coisas do tipo “quando você crescer, vai encontrar alguém e se casar” ou “quando você se casar e for mãe”. Nem quando, nem com quem ou como ela esperava que fosse.
Talvez por isso, até hoje aos 36, nunca tive o sonho de me casar.
Ao lado de casa moravam minhas tias-avós e bisavós por parte de pai. Negras quase retintas, minha mãe optou por viver perto delas, que tinham os colos e as broncas mais amorosas deste mundo. Não sei precisar ao certo suas idades porque não contavam, era uma espécie de segredo.
Depois que suas mães e avós se foram, ficaram as quatro na casa, cada uma cuidando de uma parte das tarefas. Para uma, as roupas. Para outra, o chão. Tia Santina cuidava do fogão a lenha e da comida. De quase um metro e noventa, muito magra e sempre de lenço na cabeça. Dizia que havia feito promessa e não podia sair de casa. Assim o fez por quarenta anos.
Nenhuma delas se casou. Sei que a tia Maria teve namorado, mas não quis “seguir além disso”. Se houve outros, não foram trazidos para “dentro de casa”. Primeiro tia Sebastiana, depois tia Dita ficaram acamadas por um período antes da morte e contaram com o cuidado das outras. Curativos impecáveis, penico sempre limpo, comida na cama em todas as refeições, roupas lavadas, quaradas ao sol e passadas no ferro. Todos os dias, todos os dias.
Não sei dizer se essa foi a vida que planejaram ou escolheram para si, mas posso dizer que estavam em boa companhia. Vizinhas de parede, para a casa delas era mais fácil pular o muro a ir pela rua. Bastava um salto e eu já estava na cozinha almoçando com elas. Contando com minha irmã e minha mãe, éramos sete mulheres.
Adorava minha psicanalista, mas em certos assuntos, não. Uma vez ela me disse que faltou, para mim, um pai. Ou um avô. Alguém que fosse como um orientador. Contei a ela que minha avó materna foi um exemplo muito importante, alguém firme em seus valores e propósitos. Ela disse que teria que ser um homem. Nos desentendemos.
Outra de suas teses era a de que eu tinha o desejo inconsciente de viver um amor profundo ao lado de alguém. Era evidente que no desenho desta tese, este amor tinha um “como” e um “com quem” bem definidos. Já tentei viver este amor ao qual ela se referia, mas nunca me acostumei a dividir minha cama todas as noites. Sempre tive amores. Em muitos formatos, diversos comos e quens. Ainda assim, não deixei de sentir a intermitente falta que todos dizem ser da natureza humana.
Uma vez rezei para que meu pai fosse apresentado em meus sonhos, e aconteceu. Ele me dava conselhos. Ao acordar, não me lembrava quais eram. Mas estava claro que os conselhos eram só um pretexto para eu saber que ele se importava comigo a ponto de vir me dar conselhos. De meu pai, não é falta o que sinto. Como é que se pode sentir falta do que nunca teve? Mais uma tese de minha antiga psicanalista é de que a falta era ainda mais inconsciente justamente porque nunca tive. Ela estava inconsciente da vida que me foi possível vivendo com seis mulheres – porque nunca teve.
A paixão, para mim, é essencial. Não é algo que se deva sacrificar em nome da estabilidade que, para mim, também é vital e não há como viver sem. Mas nunca consegui viver bem colocando a paixão “dentro de casa” – ou eu perdia o sossego, ou perdia a paixão.
Dentro das possibilidades de uma mulher heterossexual com duas filhas pequenas nos anos 1990, acredito que minha mãe fez a melhor das escolhas. Pôde viver suas paixões, ao mesmo tempo que conservou um lar seguro para ela e para nós. Escolheu dividir a vida doméstica com mulheres em quem confiava e que estavam ali não pelo desejo, romance ou sexo, mas pelo cuidado mútuo. Já minhas tias puderam contar umas com as outras durante toda vida e também durante a morte com um cuidado e apoio que um marido, provavelmente, não teria oferecido.