Não sabe, minha senhora, eu morro, sem ver mais meus filhos! Meu senhor os vendeu. . .eram tão pequenos… Eram gêmeos. Carlos, Urbano (…)Não tenho pena de morrer, tenho pena de deixar meus filhos !… Aqueles que me arrancaram destes braços… Este que também é um escravo.
Maria Firmina dos Reis

Toda vez que vejo o rosto de nossas crianças mortas, estampadas em jornais, os filhos de conhecidas, que nunca mais voltarão, o irmão que se foi, o tio, que nossos filhos nunca os conhecerá, a contagem dos corpos regressando a terra, o peso do caixão em nossas mãos. A dor imensurável de famílias pretas, a decisão sobre a mensagem no epitáfio, as memórias e as palavras embargadas, pois quando afirmamos que não se tratam de números, mas de nossos filhos e parentes, não estamos falando de uma mera figura de linguagem, contudo, da condição de nossa existência, pois a Raça se relaciona com o modo de ser e estar neste mundo, organizando leis e privilégios para corpos brancos e desumanizando todo aquele, que não vê como seu semelhante.

João Victor Souza de Carvalho, menino de 13 anos assassinado após perseguição por segurança e gerente da loja Habib’s , em 26 de fevereiro, na Vila Nova Cachoeirinha (Zona Norte de São Paulo), pois segundo os funcionários ele pedia dinheiro para comprar comida aos clientes. Então, estamos dizendo, que um menino foi morto porque sentia fome e incomodava os clientes por pedir dinheiro para comprar comida.

O que incomoda a classe média branca, não é a fome, tampouco as desigualdades raciais do país. O que não suporta é ser molestada, o que não suporta é a nossa presença, e o reflexo da miserabilidade que seus privilégios nos causam.

O que minha experiência como mãe, militante e professora me ensinam, é que o ódio e desumanização sobre nossos corpos é tamanha, que nossos filhos chegam não raras vezes chorosos em casa, já que seus coleguinhas brancos e brancas de três anos, os discriminam, os tratam com indiferença, os maltratam. Escolas, organizadas e construídas para a exclusão de nossos corpos e culturas, currículos escolares que estão de costas para a Educação para as Relações Étnico Raciais (ERER).

Quantas leitoras do Portal tem conhecimento da Lei Federal 10.639? Norma legal que alterou as diretrizes e bases para e educação nacional, tornando obrigatório o ensino da cultura e história africana e afro-brasileira. Quantas já foram às escolas cobrar sobre como isso vem sendo trabalhado neste espaço escolar? Ou irão permitir, que a mesma educação racista que as forjaram, também oriente e estruture a educação de suas crianças?

Portanto, há vários graus de fome para crianças não brancas, há esta fome, que lhes embriaga a alma, e os transforma em sujeitos sedentos por combater o vazio e a tontura, que a falta de alimentos provoca, e há esta fome por aceitação, pelo infinito desejo de ter amigos, ter a sua cultura positivada no espaço escolar e nos demais espaços da sociedade, ser aceito, ter atenção, pois os brancos e brancas educam seus filhos, para matar os nossos. Há um potencial nessas crianças, que me surpreende como sujeitos tão pequenos, aprendem rapidamente o que é ser branco? E o poder que isso lhes confere, mas nos esquecemos de que as crianças têm pais e mães, e demais familiares, mídia, literatura, cinema, escola, ou seja, toda uma estrutura que hierarquiza os corpos, os ensina e os educa racialmente. Este racismo estruturante, não é apenas conivente com a morte de João, mas base do sistema de pensamento ocidental, para que possam estruturar status, prestígio e poder na condição de gozarem dos privilégios da branquitude.

Desse modo, não se importam em colocar seus filhos em escolas em que não há uma única professora negra, e para que haja um exemplar, será preciso fazer um black face. Não se importam ao chegar em uma loja de brinquedos e não se depararem com brinquedos pretos, ou irem em lojas de departamentos e apenas encontrarem seus rostos brancos estampados em todos os produtos. Não se importam, pois o problema racial é apresentado como um problema da baixa autoestima das populações negras. É desse modo que a população branca se mantém no poder há mais de 500 anos.

João Victor, não é um caso isolado no país, representa o rosto de 84 jovens negros mortos cotidianamente. Os sentimentos, alguns plausíveis, outros nem tanto, pois estamos falando de João Victor, estamos falando de nossos filhos, de qualquer mãe preta, ou mãe de crianças pretas. Tenho pânico, na ideia de ter que aguardar novamente algum familiar, amiga (o), indo ao Instituto Medico Legal (IML) fazer identificação de mais um dos nossos. O ato desesperado, de quem já perdeu, e ainda tem muito a perder.

A Cristiane Mare, colunista do Portal Catarinas, conhecida por suas palestras e oficinas em torno de Raça e Gênero, é uma mãe preta e como toda mãe preta, tememos pelo destino de nossos filhos, pois nas palavras da professora Jeruse Romão “crianças negras são para alguns brancos negros em miniatura”, portanto, não são sujeitos da infância. Eles projetam nas crianças os mesmos estigmas que projetam para os adultos. E os meninos são mais visados.

A morte de João me faz pensar nos privilégios dos brancos e brancas e de suas famílias, e o peso que a felicidade de vocês representa sobre as nossas famílias, já que nossos filhos são mortos, quase sempre na tentativa de manter a sua tão velada segurança, embora saibamos do enorme medo que os brancos sentem de nós e daquilo que acreditam saber através de narrativas estereotipadas e problemas psíquicos advindos da raça. Em diálogos com algumas leituras de Mbembe “ trata-se do que se apazígua odiando, mantendo o terror, praticando o alterocídio, isto é, constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir” (Mbembe, p.26. 2014). É preciso negritar, que somos nós que os tememos, pois são nossos filhos, amigos, parentes, morrendo em suas mãos em uma constância monstruosa.

[1] Maria Firmina dos Reis. Úrsula. Romance. Florianópolis, Editora de Mulheres, 2004.p253

[2] Jeruse Romao . post no perfil de FACEBOOK. 01.03.2017

[3] Achille M’Bembe. Critica da razão negra. Lisboa: Antigona, 2014.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Cristiane Mare

    Conselheira do Portal Catarinas, é mestra pela PUC/SP em História Social, atua como pesquisadora associada no Núcleo de...

Últimas