Mas você é normal: uma reflexão sobre o estigma da neurodivergência feminina
Na coluna de estreia, Sttela Vasco reflete sobre ser uma mulher neurodivergente tardiamente diagnosticada.
Não é incomum ouvirmos que as mulheres estão cansadas, adoecidas. O relatório Esgotadas: empobrecimento, a sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres, desenvolvido pela Organização não governamental Think Olga em 2023 apontou que 45% das mulheres brasileiras apresentam algum tipo de transtorno mental no pós-pandemia. A economia do cuidado, essa expectativa de que precisamos e podemos dar conta de tudo e todos, e a ideia de que somos incansáveis tende a nos fazer sentir incompetentes quando não alcançamos o que é esperado – por nós e pela sociedade.
No entanto, há uma parte dessa conversa que acaba esquecida, uma que sofre com estigmas muitas vezes ocultos e faz com que essas mesmas mulheres cansadas redobrem sua exaustão ao esconderem parte de si apenas para esquivarem de comentários, suposições e preconceitos. Estou falando de mulheres neurodivergentes e sua batalha silenciosa para, ao mesmo tempo, não sucumbir e se encaixar.
Lendo sobre saúde mental feminina enquanto caminho pelas minhas próprias questões como mulher neurodivergente tardiamente diagnosticada, descobri que transtornos como TDAH e TEA (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade e Transtorno do Espectro Autista) tendem a ser subdiagnosticados em mulheres justamente por nos condicionarmos a ocultar traços relacionados a eles – e também por ainda analisarem os mesmos com bases em traços mais comumente encontrados em homens.
No entanto, para além disso, compreendi como é complexo navegar entre convenções sociais e o meu próprio senso de não existir vergonha ou necessidade de esconder algo que não me torna menos capaz ou inferior a ninguém. Recentemente, ao compartilhar com mais de uma mulher que eu tenho TDAH, ouvi “mas você é normal, Sttela, não, não é possível”. Disso, seguiu-se uma série de comentários como “então eu também tenho” ou “mas todo mundo é um pouco, né?”.
Após ter vivido um período em negação e um processo complexo de auto acolhimento (que ainda perdura), alcancei a tranquilidade para ser mais vocal a respeito do tema e, dessa forma, buscar, ainda que dentro do meu pequeno alcance, conscientizar e até mesmo apoiar outras mulheres que possam vivenciar o mesmo e se sentem tão perdidas quanto eu me senti por tantos anos.
No entanto, conversas desse tipo acabam por minar a minha disposição para abordar o tema. Noto que mesmo entre mulheres com acesso à informação, ainda há uma série de preconceitos e estigmas e, tão cansativo quanto ocultar um traço de si, é ter que defender-se ao verbalizá-lo e explicar que, não, nem todo mundo tem e que ter não significa ser anormal, seja lá o que ser normal seja.
A sobrecarga feminina e seus impactos na saúde mental como um todo deve ser debatida e lembrada para que possamos buscar mudanças em nosso funcionamento social, no entanto, não é possível alcançar essa transformação quando ocultamos uma parcela significativa desse grupo, relegando-as ao lugar de anormais ou parte de algum fenômeno iniciado pelas redes sociais e que não condiz com a realidade (afinal, “todo mundo tem”).
Não é suficiente refletirmos sobre saúde mental em meses específicos, como o Setembro Amarelo, mas abordar apenas determinados transtornos ou reforçar estereótipos é ainda menos produtivo. Mais do que datas de conscientização, é preciso que tenhamos uma reflexão mais íntima, para entender até que ponto somos também responsáveis pela manutenção de estigmas.
Apesar de tentador, me recuso a voltar a mascarar traços de quem eu sou, mas sinto pouco a pouco o cansaço, esse mesmo que tanto falamos, vencer. O cansaço da explicação, do corrigir, do ensinar. Não deveria ser eu, ou qualquer mulher, a fazer malabarismos para uma aceitação que é um direito básico de qualquer pessoa.
Não deveríamos ser nós a esconder, contornar, compreender. Não se trata de se encaixar, também não é sobre aceitação, é sobre respeito, bom senso e compreensão. Até porque, sim, eu sou normal. Dentro de toda a minha multiplicidade e diferenças, dentro do meu modo único de ser. Sim, esse é o meu normal e eu, como qualquer outra mulher neurodivergente, não preciso da sua validação para ser.