Domingo, 06 de fevereiro de dois mil e vinte e dois. O que mudou com este ano que dizem ser novo? Entramos em fevereiro. Faz um mês que mudou número no calendário, mas de novo mesmo não tem nada: mulheres continuam apanhando e morrendo, crianças continuam sendo estupradas, preconceitos – de classe, de raça, de geração, de gênero, de capacitismo, de sexo, linguístico, religioso, social, étnico, cultural, de orientação sexual, de aporofobia, de gerontofobia  – sendo mais escancarados, fascistas odientos saindo mais do armário, pobres disputando ossos, genocídio sanitário, desmonte da ciência, descaso com as tragédias ambientais… e a pústula veraneou jestkeiteando com o que é bem público porque sai dos nossos impostos. 

Negacionistas estão sentindo mais os efeitos de acreditar em bobagens, e até morrendo de uma doença chamada estupidez. Negaram os cuidados como o uso de máscaras, álcool em gel, aglomeraram-se. Pior, continua negando. É mórbido.

Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) estão lotadas de pessoas em boa parte arrependidas por não ter ouvido a ciência: preferiu se entupir de uma fórmula (C18H26ClN3O) indicada para tratamentos de artrites reumatoides, lúpus e da malária. Entramos em fevereiro e, se hoje são 630 mil óbitos, nada indica que este número cessará de crescer. Em Santa Catarina, perdemos mais de 21 mil pessoas. 

Hoje não há quem não conheça alguém positivado, alguém que morreu, que sofre os efeitos pós infecção, que está sofrendo e nada pode fazer senão esperar que melhore. E não pode mesmo porque seria um risco à própria saúde e a dos seus próximos. Mas quantas pessoas têm que se ariscar quando são os pais, um filho ou um familiar próximo a precisar de socorro? E quando se trata dos filhos pequenos, como desdobram-se?

Acompanhamos o imbróglio e o atraso na aprovação de vacinas para as crianças. (Des)governantes estúpidos e seus aliados, motivados por forças ideológicas e sem capacidade de perceber a realidade, são responsáveis pelo óbito de nossas crianças.

Insanos assassinos. Quantas mães embalaram filhos em mortalhas por conta do atraso na imunização? Quantas ainda prantearão seus filhos?

As mulheres sofrem com a doença ou a perda de seus filhos. São elas, na grande maioria, que enfrentam as filas dos centros de saúde com os pequenos febris nos braços. São elas que acumulam mais trabalho com o cuidado quando suas crianças sofrem os efeitos da Covid-19. Elas não dormem com um filho doente. Elas não sossegam quando um filho sofre e sofrem junto. Elas resistem. 

Mariana trabalhava todos os dias da semana na limpeza de casas do condomínio como diarista. Numa noite deste final de janeiro viu sua filha de seis anos arder de febre, aplicou o que tinha em casa, colocou panos frios na testa e nada de a febre baixar. No outro dia, bem cedo, avisou na casa onde teria faxina o que ocorria e não foi para o trabalho.  Mas a febre não cessava e abalou-se de ônibus para uma Unidade de Saúde. Foram horas de arrepios, de medo, de angústia para Mariana. A médica prescreveu medicamentos e que ficasse monitorando em casa. Mariana, que é mãe solo, faltou três dias de trabalho e fez muita falta o dinheiro que não pode receber. Fiquei me perguntando se houve solidariedades por parte das patroas.

A realidade já é dura, mas quando a doença entra pela porta as mulheres desdobram-se e acumulam jornadas entre suores e temores.

Muitas delas não têm parcerias porque um homem fez brotar no seu útero um ser e foi-se, como se não fosse ele o pai. Esta é a realidade de Mariana.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são mais de 11 milhões de mães solo no Brasil.  Elas são responsáveis por cuidar dos filhos e garantir o alimento, escola e moradia conciliando trabalho na maioria das vezes em subempregos, como faz Mariana. 

A pandemia, sabemos, sobrecarregou as mulheres. Mariana consegue recursos como diarista, todavia, milhões de mulheres perderam o emprego. Ainda conforme dados do IBGE, no Brasil, quase 8,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho desde março de 2020 com a chegada da pandemia. 

A sociedade, especialmente as mulheres em condições de vulnerabilidade, sofre. Se o advento da pandemia escancarou a miséria social, para as mulheres está sendo de jornadas a cada dia mais penosas. O que o ano novo trouxe a estas mulheres?

Na data natalícia do Nazareno, rituais religiosos renovaram o altruísmo, a compaixão, o acolhimento dos pobres, a justiça, a misericórdia, humildade e respeito ao próximo. Todavia, muitas dessas pessoas cujos preconceitos sequer escondem, exploram os funcionários e reclamam de pagar cem reais para uma diarista ou jardineiro por 12 horas de trabalho, chamam os pobres de vagabundos (oh, sabemos bem quem é o vagabundo-mor!), pisoteiam o pedinte à porta da igreja, expulsam o vendedor de vassouras que bate à porta, chutam o cachorro, racializam as relações, destilam seus preconceitos, adulam o fascismo… Essas pessoas se dizem cristãs e se intitulam “pessoas de bem” … Será que tem lugar no inferno para tanta gente? Ouvi dizer, de fonte segura, que o diabo está a expandir seus domínios territoriais e construindo fornalhas mais potentes para adiantar o serviço…

No dia que virou o ano, fogos anunciaram esperanças e prometeram a paz. Acontece que esses mesmos sentidos desaparecem depois que vira o ano, ou são esquecidos.

O individualismo corrompe a realidade, e muitas pessoas se escondem por detrás da frase “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Míseros comparsas de um país eu vem ladeira abaixo… De qual Deus falam? Não é o da misericórdia e da compaixão, por certo.  

São paradoxos. Se ainda existimos nesta roda mundana é porque há pessoas que se compadecem e se comprometem com o coletivo, com ações de solidariedade, com as lutas por direitos para todas as pessoas.

Esperanças podem ser renovadas, mas a sociedade tem que tomar tento nas escolhas de representantes que sejam comprometidas/os com o bem-estar das pessoas. Que sejam democratas, socialistas e humanistas que se compadecem com a dor de outrem. Substantivo feminino, compaixão é o sentimento altruísta de desejo e interesse para minorar a tragédia pessoal e a infelicidade alheia. 

Neste ano, sejamos pessoas a construir caminhos para a paz e um mundo onde caibam todos os mundos. Que o ano, embora velho nos preconceitos e violências, mostre que é possível. Engaje-se nesta mudança por democracia plena, aja, faça sua parte e, no coletivo, faremos a diferença. As mulheres farão a diferença! A felicidade só existe na relação de afeto e compaixão com quem nos cerca. Sejamos altruístas!

É necessário entender de onde vem a violência, quais são suas raízes e quais são os processos sociais, políticos e econômicos que a sustentam para entender que mudança social é necessária”.

Silvia Federici

Marlene de Fáveri, 09 de fevereiro de 2022. Florianópolis. 

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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