Tenho acompanhado com atenção os desdobramentos do caso de assédio contra Sílvio Almeida e existem reportagens e entrevistas ótimas nas mídias, no final deste artigo eu deixo algumas sugestões.

Também me chamou a atenção como a recente exposição da atriz Fernanda Torres à mídia internacional junto com o 8M inundou o meu feed da rede social com notícias de atrizes super famosas do norte global contando como ficaram longos anos afastadas da indústria do cinema por conta de assédios de todos os tipos no trabalho. Nesse sentido, um dos acontecimentos mais significativos na visibilidade de relatos do assédio, principalmente sexual, contra mulheres no trabalho foi o movimento #MeToo (2017)

Iniciado como uma hashtag através da qual artistas famosas denunciavam abusos sofridos, hoje é uma organização internacional que atua como um ponto de apoio a mulheres que sofrem agressão sexual ou assédio na profissão e, que esteve diretamente envolvida para proteger uma das vítimas de Sílvio Almeida, a Anielle Franco, atual Ministra da Igualdade Racial do país. 

Expor um assédio sofrido no ambiente de trabalho é sempre uma decisão delicada.

Acho que todas as mulheres de minha geração, que estão entrando nos 40 anos agora, percebem as mudanças que ocorreram e também os retrocessos de uma luta feminista por um direito básico: o de trabalhar sem ser importunada. No campo das artes, isso se manifestou de uma forma muito específica.

Eu sinto uma grande diferença, por exemplo, na qualidade e no cuidado das produções audiovisuais de hoje em relação aos filmes que fiz no passado. Quando tinha uns 17 anos, eu comecei a participar de figurações de filmes na ilha e o que abundava de “papel” para mulheres era o clássico garota de programa.

Ou, então, era raro ler um roteiro em que não houvesse um beijo ou uma cena de nu feminino, sem qualquer necessidade para a trama. Por algum tempo me submeti a participar daqueles castings infinitos com três dezenas de meninas exatamente iguais a você e saber que a metodologia de escolha, na grande maioria dos casos, era completamente aleatória e baseada em critérios de beleza física, magreza, docilidade e adaptação ao ambiente. 

Sempre fico muito feliz quando há mulheres envolvidas nas produções audiovisuais e teatrais que participo, principalmente nos papéis de direção, pois com elas me sinto muito mais à vontade para expor dúvidas que eu tenho sobre o que eu me sinto confortável ou não no transcorrer do processo. Sinto um respeito muito maior e mais segurança.

Hoje tenho coragem de falar, parar uma cena ou questionar uma ação se me parece objetificante ou se me desrespeita de alguma forma. Mas isso sou eu com 40 anos. Com 20 eu mal sabia distinguir o que era assédio dentro de uma série de comportamentos normalizados pela sociedade. 

Quando eu disse ao meu pai que seria atriz, ele me disse que então eu seria prostituta. Essa era a visão dele sobre esta profissão. Parece algo do início do século passado, mas não é. Tinha aquela história de teste do sofá, que se revelou ser uma verdade inconveniente que apenas degradava as mulheres: os homens que estupravam não tinham as suas imagens nem um pouco questionadas.

Aos poucos essa noção tem mudado e conquistamos mais respeito das pessoas alheias ao ambiente profissional e, hoje, se pode desejar ter essa carreira sem ser expulsa de casa ou deserdada da herança. No meu caso, não fui expulsa. Mas ficar também não era uma opção. 

Tenho a mais absoluta certeza que se rolasse um #MeToo nos meios teatrais e cinematográficos brasileiros, não ficava um medalhão dos “grandes” das artes de pé. Eles foram homens de seu tempo, eu penso às vezes, quase passando um pano.

Mas eu sempre vivi em um meio de atrizes e participei ativamente de movimentos que questionavam diretamente a hegemonia dos homens em papéis de direção e criação, com mulheres sempre relegadas à função de atriz ou de produtora: ou a puta que oferece o corpo, ou a mãe que faz as funções de cuidado.

No máximo uma figurinista, porque afinal, costurar é uma profissão feminina. Vi incontáveis amigas conseguirem dinheiro de edital para montar seus solos teatrais e chamar diretores homens que tomavam para si o protagonismo do projeto e terminavam com um espetáculo que não ia para frente pois elas não se viam ali dentro.

Nesse sentido, sempre aprendi com as mais velhas. Testemunhando tantos processos misóginos meu primeiro impulso foi seguir um caminho ligado à performance e às práticas de autodireção, que não dependessem de colocar meu corpo e as delicadezas da minha pesquisa na mão de pessoas centradas apenas em si mesmas e no seu “gênio” criativo. Eu queria fugir da figura do diretor como o diabo foge da cruz e aqui também incluo mulheres machistas em suas práticas, que existem aos montes. 

É difícil distinguir um assédio, pois ele geralmente vem encoberto de uma atitude protetora ou confusamente afetiva. Por vezes o assediador, ao longo do tempo, te faz acreditar que o que ele está fazendo está sendo provocado por você mesma. O assédio no ambiente do trabalho geralmente se alonga por muito tempo, meses ou anos. Hoje as jovens, felizmente, têm muito mais coragem de denunciar ou não hesitam em sair do trabalho em prol de sua saúde física e mental (aquelas que podem se dar a esse luxo, claro). 

Porém, o medo de sofrer retaliações em sua trajetória profissional faz a grande maioria de nós, e aqui não excluo as inúmeras vezes que vivi isso, pesarmos nossas ações e terminar fazendo todo um processo de redução de danos que termina com a gente indo pra terapia juntar os caquinhos e o assediador belo e formoso seguindo sua vida impávido, repetindo o mesmo comportamento com as próximas vítimas.

Na repercussão recente do episódio de podcast em que a escritora e jornalista Vanessa Barbara relata um relacionamento abusivo e a misoginia do meio literário brasileiro, as opiniões se dividiram: deveria Vanessa Barbara ter se calado e não contado a sua história para proteger a imagem dos homens envolvidos? Qual a finalidade de expor as entranhas de uma relação pessoal ou profissional que envolve abuso ou assédio grave se isso não vai ser levado à lei? Também não sei a resposta. 

Nem tudo vai ser levado ao processo criminal em si. Existem casos como o de Gisèle Pelicot que está lá, firme e forte se tornando um símbolo de coragem ao denunciar o marido que a sedou e estuprou por 30 anos seguidos, mesmo que os jornais franceses esmiúcem em detalhes todos os horrores que seu corpo viveu em praça pública.

A exposição e a humilhação pública da mulher que denuncia precisa ser muito menor do que o horror aos atos daquele que comete o crime. Essa é a mudança que ainda não vemos se movimentar em nossa sociedade. 

Esses dias, em uma conversa com uma amiga que é professora do ensino médio de escola particular ela avisa: está vindo uma geração de meninos misógina, violenta e preconceituosa no horizonte, seduzida pelos discursos extremistas da direita, que pipocam por todo o mundo. 

Como vai ser conciliar passado, presente e futuro do ser mulher nesse mundo em transformação? Pergunta difícil, que fica para impulsionar as reflexões da leitora. 

Para saber mais do caso Silvio Almeida ouça a excelente entrevista da jornalista Ana Clara Costa para o podcast O Fio da Meada.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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