A chanceler britânica Liz Truss sancionou Roman Abramovich dez anos depois das ativistas do grupo punk russo Pussy Riot pedirem pelo fim de Putin e seus aliados.

Em 10 de março de 2022 divulgou-se amplamente que Roman Abramovich, dono do Chelsea, foi alvo de sanções no Reino Unido e ficou impossibilitado de vender o famoso clube de futebol, como vinha tentando fazer desde a invasão da Ucrânia. O magnata russo amigo do presidente Putin teve seus bens congelados, e embora as atividades esportivas do time londrino tenham sido mantidas, está impedido de fazer negócios tais quais assinar novos contratos.

A chanceler britânica Liz Truss anunciou a medida via Twitter, dizendo queOligarcas e cleptocratas não têm lugar na nossa economia nem na nossa sociedade. Com seus laços estreitos com Vladimir Putin, são cúmplices de sua agressão”

O movimento da Secretária de Relações Exteriores é significativo e importante, mas não escrevo este texto para avaliar suas estratégias de guerra. Ninguém precisa de análises feitas sem rigor e apressadas pela demanda algorítmica sobre um tema tão grave. E eu até gostaria e poderia escrever um texto para apontar a relação óbvia entre poder patriarcal, política e futebol que esta notícia também ajuda a expor, mas tampouco é isso que vou fazer. Neste texto, não avalio muito os acontecimentos que descrevo, ou seus desdobramentos; ao contrário, tomo eles como pontos de partida para contar uma história feminista. 

Conto esta história encorajada pela jornalista editora do iG Delas e doutora em ciências políticas Fhoutine Marie, que recentemente apontou para a necessidade por enquadramentos diversos com que falar e pensar sobre guerra. Escrevo porque minha motivação para escrever este texto de certa maneira antecede esta guerra. Este texto é motivado pelo que penso ser uma tarefa do feminismo, nesta e em outras guerras: encontrar formas de narrar participações e atores pela perspectiva da luta feminista, o que deve contribuir para a construção de novos imaginários e utopias sociais e políticas

Escrevo este texto porque as alianças entre homens poderosos são uma das múltiplas facetas do patriarcado, e a demora para agir na interrupção delas é um dos dispositivos de proteção de homens cis que, insisto, compõem este sistema social.

Dos muitos enquadramentos possíveis sobre atores em destaque na geopolítica hoje, um não pode nos escapar: há dez anos, e me lembro bem, um grupo de inteligentes jovens justificadamente enfurecidas se transformou em ícone, desde a Rússia para o mundo, com uma performance destemida, debochada e rica em meta-significado em que pediam para que a Virgem Maria virasse feminista e livrasse a Rússia do Putin. As bem vindas sanções e outras reprimendas na direção do círculo de Putin chegaram tarde comparadas a esta ação. 

Uma década atrás três das integrantes do grupo feminista russo Pussy Riot que fizeram a performance – Nadia Tolokonnikova, Maria Alyokhina e Yekaterina Samutsevich – foram presas por conta de sua oração punk “Virgin Mary, Put Putin Away” (“Virgem Maria, tire o Putin daqui”), uma canção cuja letra expõe o poder patriarcal pela via das conexões entre Putin e igreja, e implora para que uma importante santa da pátria vire feminista e livre o mundo de sua tirania.

As imagens da performance que causou a prisão das artistas, onde aparecem vestidas com roupas e balaclavas coloridas em pleno altar da catedral de Cristo Salvador em Moscou, são tão ou mais icônicas que sua poesia política. A genialidade do grupo é capturada no documentário premiado pelo Emmy cujo pôster ilustra este texto, “Pussy Riot: A Punk Prayer”, de 2013, que narra muito bem a sagacidade delas do momento em que se fazem simbólicas a partir desta intervenção até o julgamento que acaba por condená-las

Nestes mesmos anos, o mundo todo estava fazendo negócios com Putin e seus amigos. 

O patriarcado é um sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis, o oposto do que fizeram as jovens ativistas do Pussy Riot em 2012. O mesmo não pode ser dito dos departamentos de relações exteriores nem de corporações ao redor do globo desde antes disso e até agora. A chanceler que me desculpe, mas oligarcas e cleptocratas vêm tendo lugares, e dos mais privilegiados, na economia, na sociedade e na política. 

Ninguém esperava, literalmente, que Maria mãe de Jesus filho de Deus descesse dos céus para arrancar o coração de Putin com as próprias mãos. A quimera sempre serviu como boa metáfora para entregar, com poucos signos e muita sátira, um entendimento fácil de ter e difícil de explicar: esse que deseja que a luta do feminismo contra o patriarcado tenha uma força tal qual a que a imagem da Virgem tem para controlar o imaginário popular cristão (alô, Madonna!). 

A virgem não intercedeu na deposição do déspota, nem vai. Pussy Riot continua na ativa, e Nadia Tolokonnikova, que foi declarada “agente estrangeira” pelo Kremlin e nomeada prisioneira de consciência pela Anistia Internacional ano passado, já ajudou a arrecadar mais de USD 7 milhões para vítimas ucranianas desde a eclosão do conflito, em 24 de fevereiro deste ano.

Há mais variáveis na equação que culminou na invasão da Ucrânia do que esta perspectiva aqui jamais visou oferecer. A escrevi para contemplar, como eu disse, um imaginário feminista que sirva para a construção de um outro mundo possível. Um onde os alertas das mulheres sobre homens perigosos são ouvidos, por exemplo. Imagine o quão diferente o mundo estaria agora se líderes globais tivessem levado a sério o recado dado pelas moças da oração punk?

 

 

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

Últimas