Domingo, dezenove de julho de dois mil e vinte. Semana de congelar os cílios! Aqui no sul do mundo, da América, do Brasil e de Santa Catarina está difícil escrever à noite. Os pés congelam e me obrigo a aquecê-los com bolsa de água quente. O nariz vermelho não tem jeito: ou o protejo ou respiro. Sorte que o sol abriu por dois dias e pude terminar de tirar ervas daninhas e montes de folhas da ventania recente que quase escondeu as alfaces. Está tudo organizado! Tomateiros cereja estão carregados e ainda verdes, lindo de ver!

Depois que minha mãe dorme, os sons do silêncio inundam a casa e seu entorno. Às vezes ouço pios de corujas e barulhos das caçadas noturnas de Guevara e Tchê. No mais, é silêncio. Adaptei um espaço numa parte do paiol, e me sinto bem entre ferramentas, milho para as galinhas, lenha, caixas de tudo e comida de gato. De onde escrevo vejo árvores e muito verde da horta. Ao mesmo tempo, ouço pássaros que parecem se comunicar assim: um chamando o gorjeio do outro e o outro respondendo na linguagem de pássaros. Uma sinfonia de gorjeios!

Como disse na crônica anterior, seria o paraíso viver aqui, não fossem as peçonhas lastimáveis a açodar nossas vidas. Uma delas é o medonho invisível que cerceia nossos abraços e lambidas na inenarrável experiência de nossa geração: passar por uma pandemia cáustica que tem nos paralisado de medo do contágio e que já ceifou a vida de quase oitenta mil pessoas no Brasil. Outra, que me põe irada, são as vidas que, sob o pátrio poder feminicida, são assassinadas por serem mulheres. A terceira peçonha é a representação de um Barrabás que, uma parte das pessoas iludida e outra com o pecado da avareza, escolheu ignorância e soberba para dirigir o país. Bem, interpretei a narrativa bíblica (Marcos 15:6-15), já que pensar ainda é livre.

Essas três maldições se interseccionam pondo nuas as relações na sociedade. Vivemos um estresse de notícias que se repetem como urdidura de uma aranha envolvendo milícias, guerras palacianas, jogos de poder entre legisladores e executores, a maioria machos de bravatas. Pasmem, muitos são religiosos. É, esse país já foi uma nação – lembro que, em dois mil e nove eu estava em Madri, e num ato de rua tremulava a bandeira do Brasil; senti orgulho pois estávamos num governo democrático que avançava nos projetos sociais e inclusivos.

O que era sentimento de nacionalidade, hoje, se transforma em vergonha. Em nacionalicídio.

Na imponderabilidade do que estamos experimentando, coisas boas acontecem: dia quinze minha mãe fez oitenta e dois anos! Não foi possível reunir a família devido às normas de afastamento social. Embora minha mãe tenha muitas plantas, comprei um vaso com flores de maio e uma bonita camisola. Servi seu café na cama com bolo feito pela Rita, a cuidadora, e chocolates. Surpresa, ela estendeu os braços para me aconchegar e agradeceu com um sorriso largo. Perguntei se já havia recebido café na cama: “Sim, mas só internada no hospital”, disse. Doravante farei sempre que puder para ver esse seu sorriso e receber o abraço!

Foto: arquivo pessoal

Ela recebeu presentes, um bolo enfeitado com velas e outros doces dos filhos que moram perto e, pela primeira vez, nos reunimos em família através de um encontro virtual. Foi emocionante ver minha mãe ouvindo parabéns pela tela do computador. À distância, mas com o coração pulando, ela sorria e batia palmas!

Enquanto bebia seu café, disse: “É, estou velha, minha nossa! Não vou durar muito, não…”. Eu disse  que é sobrevivente com mais de oitenta anos; que é um privilégio estar viva nessa idade; que tem netas e netos crescidos, estudando e buscando seus caminhos, todos com bons princípios; que acumulou sabedoria;  que está numa casa boa e numa cama quentinha; e que tem a mim… “É, que bom que eu tenho cuidados, e tanta gente não tem nem casa. Que bom que tenho esta casa… lembra como foi difícil construir?” A memória preside os lapsos e os acontecimentos…

Faz vinte e oito anos, e já viúva, a casa dela pegou fogo e sei que doeu muito perder tudo. Providenciamos uma casa de madeira pré-moldada, juntamos móveis que tínhamos a mais em nossas casas e assim recomeçou tudo.  Anos mais tarde, minha mãe desenhou e fez construir a parte de cozinha e adjacências, que ficou primorosa e com “boa despensa” como queria, típica de casas italianas. Minha mãe engenheira!

Logo que pode, fez construir uma floreira porque, disse, sempre tivera esse sonho: um espaço delimitado e semifechado para plantar todas as mudas que quisesse. Ali há um reino que ninguém toca, uma babilônia de flores e árvores ornamentais. Aos poucos, plantou nos arredores da casa as variadas espécies que encontrava pelo caminho, tanto que a casa quase some no meio do verde! Aonde quer que andasse, seu olhar ia para as flores: eu a ajudei a “roubar” mudas de uma praça numa ocasião!

Apesar de nunca ter dirigido, construiu a garagem “que é para vocês quando vierem”. Nesse tempo foi enchendo latas, potes reutilizados, alguns de barro, plantando sementes e mudas. Curiosas são as duas caixas pretas de baterias de carro bem antigas onde crescem pés de babosa. A cada vez que vinha visitá-la, mostrava-me as novas aquisições no jardim, uma pequena reforma, a horta e os ovos de galinhas felizes.

Passaram-se duas décadas, a parte de madeira envelheceu e cupins se alojaram de forma definitiva. Por anos insisti com o projeto de demolir a parte avariada e construir outra. Tínhamos economias e nada impedia, mas ela não aceitava. Quando meu irmão mais novo saiu de casa e ela passou a morar sozinha, ficamos preocupados. Isso faz oito anos e ela estava com setenta e dois. Supliquei que aceitasse uma pessoa para lhe fazer companhia. Sem argumentos: “Eu desde pequena sempre quis morar sozinha, agora que eu posso vocês não querem deixar?”, disse ela. Confesso: me caiu na jugular. Como negar que realize essa vontade de morar só? Como não aceitar e permitir sua independência?

Aconteceu num entardecer nos primeiros dias do ano de dois mil e quinze. Andávamos pelo jardim, eu argumentava que construir uma casa nova era para seu conforto, que ia ser bom, teria mais espaço… Ela pensou, andou, olhou o terreno e disse: “Se me deixarem continuar morando sozinha, eu quero dois metros a mais deste lado, um quarto e um banheiro só para mim, e um quarto de costura”, decidida. Desenhou sua casa na imaginação, explicou para os pedreiros, fez as compras e acompanhou toda a obra. Conquistou o sonho de uma casa do seu jeito, só sua e com liberdade! No início, para as pessoas mais próximas que a visitavam, mostrava a casa com orgulho e dizia: “Eu que desenhei!”

Viveu oito anos assim, dona absoluta de seus domínios: a casa, a horta, o imenso jardim, as frutas, a pastagem da vaca de leite, as galinhas e sempre uns gatos. Dava conta de tudo com satisfação e sempre nos recebia com polenta, minestra, batata doce assada, verduras, cavaquinhos, ovos e carne de galinhas felizes.

Mas, o tempo é implacável, e ela vai perdendo as forças.  Tem se queixado de dormência na mão direita e faço massagens com algum produto canforado. Alivia, mas por pouco tempo. A olho, e cada vez mais me enterneço. Será que vou ficar igual a ela? pergunto-me. Acompanho faz quinze anos desde os primeiros tremores nas mãos, a depressão que seguiu, as idas a Florianópolis, as calmarias temporárias depois de acertados os medicamentos, as decaídas, os retornos. Por vários anos a memória não a traía e tomava os remédios conforme prescrições. Não, não queria ajuda e dizia que não precisava e podia dar conta e de si e de tudo.

Foto: arquivo pessoal

Mas o Parkinson é desnorteador. Não são os tremores dos primeiros anos que tiram a liberdade. Com o passar do tempo, é o corpo que se nega a ficar parado, as extremidades passaram a formigar, as mãos que eram ágeis se atrapalham, e a memória vai se esvaindo. Por exemplo, pergunta várias vezes por dia: “Tu já foste ao supermercado?”, e eu digo que sim, que fui ontem, que não falta nada. Algum tempo depois, ela repete: “Tu não vais ao supermercado? Vai ficar tarde!”. Todos os dias, ao medicá-la, ela diz: “Mas eu já tomei remédio hoje!”. Então digo que este é outro, que faz tantas horas, e assim vamos indo.

Então eu lembro que só posso estar aqui e cuidá-la porque ela me disse um dia: “Vai, estude minha filha. Uma mulher tem que ser independente”. Eu fui. E agora posso retribuir.

Numa ocasião, em dezembro último, estávamos no jardim e eu a observava enquanto regava suas plantas. Escrevi um poema que chamei de “O jardim de minha mãe”:

Com as mãos trêmulas, o corpo arqueado e
a passos curtos, ela locomove-se com dificuldade.
Segura a mangueira e, uma a uma,
segue molhando as plantinhas.
Estão em vasos, potes, latas, caixas de leite
que abriu e encheu de terra.
Encharca todos os tons de verde e floridas
com mais cores que as do arco-íris.
É verão. É quente e entardece.
Ela interrompe o que está fazendo, me olha e diz:
‘Eu não vou durar muito, e esse jardim vai se acabar…’
‘Não, mãe, a senhora vai demorar
muito para morrer!’, respondo.
Me dói, porque é verdade o que ela diz.
Ela sabe que eu sei que é verdade o que disse.
Cúmplices, olhamo-nos em silêncio.
Ela volta a molhar o jardim…

Neste julho a encontrei mais vulnerável. Seu maior ressentimento é não dar conta de fazer as coisas cotidianas que sempre fez.

Minha mãe é uma mulher do século passado, educada para servir, trabalhar muito e não ter descanso: “Mas eu não fiz nada de útil hoje”, reclama. Eu respondo que já fez muito, e se não dá mais para subir em árvores, rachar lenha, cuidar da horta, carregar peso, ordenhar vacas, deixe que eu faço isso.

Vamos juntas para o que virá. Nos cuidamos e não será um vírus invisível a nos separar. Vamos continuar plantando mudas de alface e de flores, colhendo abacates, ovos, limões e alimentando gatos e galinhas. Agora que tem tempo para si, quero que o use para ser feliz nos anos que, sabemos, não serão muitos.

Tenho a sorte de ter uma mãe ciente das dificuldades cotidianas para os mais pobres, justa, generosa e que se condói com a dor alheia e mais ainda com as violências sofridas por mulheres. Se uma criança sofre, ela se desespera. Sabe o valor dos direitos humanos, da democracia e da cidadania. Lamenta o caótico governo que está matando pessoas num país sem rumo. Embora se atrapalhe na memória imediata, os sentidos da solidariedade e da compaixão continuam os mesmos.

E não é para amar muito? A primeira feminista que conheci enfrenta os limites da liberdade de sair de casa e fazer suas coisas. As forças não mais dão conta de simples ações como tomar banho, vestir-se, cozinhar, capinar, costurar, bordar. Nesta semana fui alvejada por emoções raras e resolvi provocar verbos, palavras, frases que pudessem expressar minha gratidão a uma mulher que, como eu, sonhou a liberdade. Alcançamos, mãezinha, cada qual no seu tempo.

Sigamos! Então, se essa pandemia me assusta, ao mesmo tempo me tem presenteado com aprendizados. O que levamos desta vida é a liberdade que exercemos ao fazer escolhas, e minha mãe pode encontrar seus sonhos: morar só aos setenta e dois anos e ter uma casa só sua. A vida é um sopro, e deve ser um campo de aprendizados para a solidariedade, afetos e cuidados. Cuidar é precioso. Cuidar com a ética e vivenciar a alteridade para com as pessoas idosas deve ser um princípio dos direitos humanos. Se estou escrevendo estas páginas é porque existo: ela me cuidou para que eu pudesse andar, crescer, ousar. Terei eu a sorte de chegar a ter sua idade?

Sobre seus prazeres? “Quando te tive, foi o maior prazer de minha vida, eu não estava mais sozinha. E depois teus irmãos…”.  Foram oito décadas de experiências e acúmulo de sabedoria. Eu a valorizo mais, e penso nas dificuldades como criou seus filhos e como suportou os descuidos, as ausências e os abandonos. Ela deu conta. Meu irmão e eu, dia desses, conversávamos sobre quando ela nos deixar… sem palavras mais. Não sei por quanto tempo a terei para olhá-la mais, compreender mais, ouvir mais e cuidar mais. Não importa. Cuidarei dela e de seu jardim! Cuidaremos de nosso jardim!

A pandemia é torpe. As ausências e distâncias a amargam sem os filhos, filhas netas e netos ao redor. Tenho o privilégio deste amor pertinho, quentinho, trêmulo e terno. Ela me ensinou muito, e continuo aprendiz. Sigo numa clausura que tem se mostrado plena de afetos. Parabéns, mãezinha!

Dedico esta crônica a todas as mulheres que, tendo já vivido mais de meio século, ou bem mais, possam experimentar o exercício de fazer escolhas. Estão vivas, trazem histórias singulares e merecem. Proponho ouvir mais, compreender mais, abraçar mais e cuidar mais. Cuidar como eu gostaria de ser cuidada e como ela cuida de si mesma.  Estamos vivas, é o que importa!

Marlene de Fáveri, 19 de julho de 2020. Turvo, SC.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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