Domingo, vinte e um de junho de dois mil e vinte. Esta última semana pude estar na companhia de minha filha como há muito não fazíamos. Ficamos isoladas o tempo necessário pra nossa segurança, e então ela veio até mim.

Acalmou minhas angústias com carinho, colo e massagens nas costas e nos pés. É que ando muito sensível e me tocam as coisas mais triviais tanto com as coisas grandes e danosas como os estragos que essa peste graxenta tem feito.

Somando a isso, são tantas e tão graves as afrontas do mandante de coturnos na destruição de vidas, do meio ambiente, dos direitos de comunidades indígenas, quilombolas, dos trabalhadores, das mulheres, da educação que aviltam nossa dignidade. Está em curso um nacionalicídio orquestrado que mata sonhos, e que por vezes me vêm à mente pensamentos malignos.

Tenho que fazer esforço para acatar o que minha mãe sempre diz quando solto verbos de ira: “Não, minha filha, não deseje o mal para ninguém, ele pode vir contra a gente.” Sabedoria de mãe é pérola. Bem, pensar ainda é livre… E quem nunca?

O clima virou e das nuvens fechadas caem águas em pingos frouxos, como se adivinhassem que a lua está no quarto minguante. Esta fase da lua indica desapegos, mudanças, e talvez por isso põe-me quieta e introspectiva nas minhas cavilações com desejos de cometer arteirices.

Estar com minha filha nesses dias sem luar e outonais é um privilégio. Compartilhamos impressões sobre política, preconceitos, feminismo, gênero e as criminosas ações de um desgoverno surtado com seus propósitos de destruição dos direitos mais elementares. Conversamos sobre discriminações e estereótipos que cercam as franjas do cotidiano e, sendo estruturais, são difíceis de erradicar.

Numa dessas conversas, ela me contou uma experiência recente. Disse que, num grupo de whatsapp do qual participa, verificou posicionamentos racistas e machistas. Incomodada, conversou com algumas pessoas do mesmo grupo, as quais também não se sentiam confortáveis com tais afirmações. Pensaram estratégias educativas para que essas pessoas buscassem refletir sobre suas posições sem parecer agressivas ou invasivas. Como não sentir paixão por essa filha?

Ela nasceu nos anos noventa, quando eu iniciava meus estudos para o Mestrado. Morávamos em Navegantes, Santa Catarina, e na sala da casa havia uma mesa grande; ali eu estudava. Ela mal andava mas subia na mesa e revirava minha papelada, desenhava e fazia perguntas difíceis de responder para uma criança.

Foto: arquivo pessoal

Nos meus livros e cadernos estão impressos seus rabiscos e desenhos, e sempre que olho me enternecem. Ela foi crescendo entre minhas buscas profissionais, estudos e passeatas. Assim, ela foi acompanhando as lutas em que me embrenhava e fez seus aprendizados feministas e democráticos. No entremeio dessas conversas entre mãe e filha, me dizia sobre suas indignações com as violências de gênero e outras. “Mãe, lembra quando eu era pequena e você me falava dos preconceitos que existiam e me explicava? Eu até decorei! Eram dez!”

No precioso dom da memória, ainda lembrou: “Eram de raça, de etnia, de corpo, de classe, de gênero, de orientação sexual, de geração, de religião, de pessoas com deficiências e preconceito intelectual”. Hoje acrescentam-se outros, mas na época foi o que expliquei.

Lembrou de uma viagem entre Florianópolis e Itajaí quando, durante uma hora ou mais, expliquei-os um a um, com exemplos e detalhes. Sua curiosidade e vontade de saber me encantavam, assim como eu me dedicava em aprender sempre mais e levar com mais propriedade esses conhecimentos para meus alunos e alunas da Universidade.

Durante minha vida como professora cultivei o desejo de desventrar os preconceitos, estripá-los até lhes saírem as vísceras. Como eles surgiram? me perguntava.  Na busca do entendimento, associei preconceitos à palavra   discriminação, que significa distinguir, separar e excluir de forma desigual ou injusta pessoas ou grupos por terem características pessoais específicas.

Dessas diferentes características, constroem-se estereótipos – tipos estéreis, na etimologia – ou imagens pré-concebidas de um padrão único, generalizante e raso sobre alguém ou algo. Estereótipos definem pessoas excluídas por algum critério: pelas roupas que usam, cor da pele, acessórios, tatuagens, sotaques, naturalidades.

Comportamentos como crenças, nível cultural e educacional, etc., são carregados de um juízo antecipado, tipificado, uniformizado, marcado. Em geral percorrem o senso comum; tornam-se ‘verdades’ quando reproduzidas, socializadas e veiculadas à exaustão. Ao discriminar por naturalizar estereótipos, reproduzem-se preconceitos.

Um exemplo aparece nas análises da construção cultural do gênero: mulheres e homens desde que nascem aprendem comportamentos que lhes prescrevem uma história, a de ser homem ou mulher com condutas que lhes são pré-elaboradas, ensinadas e cobradas como únicas e verdadeiras. Na nossa cultura, prescrevem-se papéis definidos para um e outro sexo, motivo de dores e sofrimentos, exclusões e até mortes.

O feminicídio, esse cancro social, é um deles, e que tem se avolumado com o isolamento/afastamento social por conta dos cuidados de higiene e precaução com a covid-19. Preconceito, portanto, é fraqueza de princípios. Li dia desses que “Fraqueza é tratar alguém como se pertencesse a você. Força é saber que cada pessoa pertence a si mesma”, na frase de Maame, personagem do fenomenal romance de Yaa Gyasi, O caminho de casa (p.63).

A romancista conta uma história de dor, memórias e cotidianos de violências e preconceitos desde o século XVIII até os dias de hoje, situando três gerações que desde a África para o norte da América foram separadas numa trajetória de escravidão. Tratar alguém como se lhe pertencesse carreia preconceitos elaborados no racismo e no machismo estrutural, na homofobia e outras fobias cruéis construídos nas artérias do cotidiano. O preconceito é por si só autoritário, porque despreza o outro, a outra; se despreza, não respeita.

Numa sociedade alicerçada no respeito, as pessoas confiam umas nas outras. Em relações de respeito mútuo em todos os âmbitos – da política, da economia, da sexualidade, das cores da pele, dos gostos, das classes sociais, dos credos, dos sotaques, do gênero, da infância, da velhice, dos vulneráveis, daqueles que têm alguma necessidade especial, da juventude e seus clamores, etc – há confiança, há diálogo que fundamenta a sociedade democrática.

Confiança não se compra, se conquista. Não é como disse nesta semana o mandante de coturnos: “Confiança não se compra, se adquire.”  Ignorância sem medidas; não sabe ele que esses dois termos são sinônimos. Pobre Brasil!

É o que nos falta hoje neste cenário de intempéries: além de estarmos enfrentando uma peste viral pandêmica, enfrentamos também uma gestão político-econômica e social no modelo fascista, excluindo o diálogo e o respeito. Os preconceitos, intolerâncias e desrespeito estão a um passo de nós; aviltam-nos diariamente com a produção de ódios que se baseiam na discriminação e nos estereótipos.

Como já disse em uma crônica, nunca sofri preconceito de cor dada a minha pele branca, e tenho consciência de meu lugar de branquitude. Sofri outros, de gênero muitas vezes, de classe e corpo.

Lembro-me de quando entrei na faculdade nos anos oitenta, ainda desajeitada e arisca na cidade grande e recém iniciando o curso de Ciências Socais, uma estudante olhou para as minhas mãos e disse: “Nossa, que mãos grandes as tuas! São mãos de colona, mãos feias de colona”. Até então não tinha me dado conta de que minhas mãos eram – são – grandes porque no lugar de onde eu vinha pessoas não reparavam no tamanho das mãos, e também não era vergonhoso ser colona, e mãos grandes eram mãos para o trabalho.

Esse fato cravou-me fundo e, com vergonha, passei a esconder as mãos já que as sentia grandes e feias pois denunciavam minha origem camponesa. Por um largo tempo as escondia, até que um homem segurou minhas mãos e disse: “Gosto de tuas mãos, são grandes e podem fazer coisas grandes, boas e belas.” Ah, como foi alentador perder a vergonha das mãos! E, como também sei costurar, me surpreendi quando percebi que minha mão aberta tem vinte e cinco centímetros, logo, comprava tecidos medindo com a minha mão!

Mais tarde já no curso de História e em contato com os estudos culturais, aprendi os porquês dos preconceitos contra os colonos e as colonas. Ao pesquisar, para a tese de doutorado, sobre as tensões e perseguições aos ítalo-germânicos durante a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina, entendi esses preconceitos, e foi-me libertador! Ainda fico comovida com essas descobertas.

Lembro também das tantas vezes que fiquei constrangida por conta de meu sotaque; era um sofrimento esse meu erre carregado oriundo de minhas raízes ítalo-germânicas. Este, eu não perdi de todo, tanto que costumava pedir desculpas aos alunos e plateias por meu sotaque.

Na Universidade, costumava dar aulas na primeira fase, e lembro que em todas as turmas havia alunos e/ou alunas que sofriam com a vergonha do sotaque interiorano. Um deles estava desistindo do curso, e quando contei minha história com as mãos e o sotaque, sentiu-se acolhido: hoje é professor e tenho-lhe um carinho imenso!

Foto: arquivo pessoal

Coincidentemente, hoje quando escrevia estas linhas, a amiga Urda Alice Klueger me ligou. Entre conversas sobre a pandemia, os limites de tudo, os seus amados bichos – Teresa, Chorrilho e Manuelita – falei do que escrevia e contei sobre as minhas mãos.

Então Urda lembrou que, quando jovem, residindo no bairro Garcia, em Blumenau, dedos longos eram considerados “mãos de pianista”. Disse-me que seu sonho era aprender a tocar piano, mas tinha mãos pequenas e feias para os padrões daquela cultura. Havia um ditado para quem tinha dedos longos: “Ah, que mãos lindas, mãos de pianista!”. Como tinha mãos pequenas, além de não poder tocar piano, ouvia que suas mãos eram de “plantadora de aipim”.

Esses relatos sobre as mãos nos dizem dos preconceitos construídos na educação informal e que se reproduzem nas escolas e até nos cursos superiores. Revelam estereótipos que discriminam, construídos de acordo com as representações passadas de geração em geração na cultura de cada grupo social. E cada cultura modifica critérios de bonito e feio conforme seus interesses ou seu modo de ver o mundo. Urda e eu temos na memória as marcas de um preconceito que, se parece menor, marcou nossas vidas.

Preconceitos estimulam violências simbólicas, físicas, de gênero, de classe, de raça, de etnia, de sexo, de geração, de profissão, de local de residência, patrimonial e outras ao qual uma pessoa ou grupo ao qual é associada. O parâmetro de preconceito é o poder exercido por alguém sobre pessoas. Os fios dos fascismos estimulam comportamentos autoritários que extirpam liberdades e assolam a democracia.  Feixes de ódios às mulheres estão no calor dos discursos do mandante de coturnos e seus ministros tenebrosos.

Por que tanto ódio aos estudos de gênero que promovem ações e práticas como proposta generosa para dirimir preconceitos e violências contra mulheres? Por que nos discriminam calcados em conceitos que já deviam estar superados, se somos metade da humanidade e provemos trabalho e educação em todas as áreas do conhecimento e da produção?

Por que muitos homens, e infelizmente algumas mulheres, ainda resistem à equidade de gênero? Por que disparam contra a diversidade e seus direitos, como fez o ex-ministro sem educação ao revogar portaria que estipulava cotas na pós-graduação?

Nos cabe, nesses tempos sombrios, lutar com mais afinco para que a justiça social, a cidadania, a democracia e o respeito à diversidade sejam respeitados. Reagimos e reagiremos com nossas armas da solidariedade contra preconceitos, que só promovem a iniquidade, o ódio e o caos.

Rosa Monteiro, em A louca da casa (p. 59), resume: “Os preconceitos nos aprisionam, diminuem a nossa mente e nos idiotizam, nos transformam em cúmplices dos abusos e da injustiça”.

Não sejamos idiotas, nem cúmplices do que nos avilta. Mulheres de todo o mundo, uni-vos!

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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