Domingo, quatorze de junho de dois mil e vinte. Nesta semana tive que voltar para a minha casa na capital para resolver coisas e me aninhar entre meus guardados, meus livros e meus escritos. Foi meu segundo retorno, já menos tenso, por conta dos aprendizados para lidar com a pandemia. Da primeira vez, em meados de março, ainda sem me dar conta do que seria a clausura, e mesmo desprevenida de roupas e outras coisas, do que mais senti falta eram os cadernos de poesia, as mil folhas que escrevi e escrevo, e dos livros. Imagine ser impedida de voltar e ficar quarenta dias longe de casa! Foi assim minha história com o início dessa pandemia, quando decretos de isolamento/afastamento social nos impuseram o lugar do corpo. Necessário, como sabemos. Porém, assustador.

Depois que saí da casa dos pais para estudar, foi a estadia mais longa no interior. Foi como uma volta para casa da mãe. Na ocasião, e sendo fato consumado, me vi entre a horta, o jardim, os cuidados com minha mãe e muitas coisas que precisavam ser feitas na casa e no seu redor. Vesti a camponesa e entre brigar com mosquitos, me aproximar de Tchê e Guevara, pegar firme na enxada, estar em casa com a mãe, passei os dias em função do cotidiano. Às noites, escrevia. Entre vinte de março e vinte de abril escrevi seis crônicas. Como pude? Penso. Era visceral, necessário para meu equilíbrio emocional. Então escrevia.

Neste outro lugar, na minha casa da capital, sinto saudades do interior, e quando estou lá, tenho saudades daqui. A pandemia mudou minhas percepções e me colocou num entrelugares. Contudo, nesta semana pude receber minha filha: ela estava isolada em Curitiba e combinamos todos os cuidados para que fique uma semana comigo. Estou numa alegria imensa com sua companhia, seu sorriso largo, seu bom humor, sua disposição para a vida, os estudos, a busca da cidadania italiana e que está complicada agora, com as restrições e as incertezas. Mas vai dar certo, minha filha. Sigamos com os projetos.

Nesta semana, mais um grande choque: mais precisamente no dia dez, uma medida provisória assinada pelo nefasto de coturnos, juntamente com seu escudeiro desequilibrado que em tudo vê obra do comunismo, feriu nossa carne como se fossem baionetas. Tiveram a coragem de impor o que se segue: “Não haverá processo de consulta à comunidade escolar ou acadêmica, ou formação de lista tríplice para a escolha de dirigentes das instituições federais de ensino durante o período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia do Covid-19”. Como assim? Desde a Constituição cidadã de 1988, estava consolidada a autonomia das comunidades acadêmicas na escolha de seus dirigentes. A criação dos institutos federais de educação em 2008 também determinava que seus reitores seriam escolhidos após um processo de consulta à comunidade escolar. Estas leis consolidaram o processo de democratização das instituições de ensino da rede federal no país. Com seu tosco entendimento sobre instituições democráticas, em 2019, esse mesmo mandatário de coturnos alterou o rito dessas eleições para que pudesse ele próprio escolher aquele que lhe convinha para seus propósitos de politicagem. Agora, é o governo querendo dar legalidade a seu autoritarismo, num escandaloso golpe às instituições de ensino, e isso em plena pandemia.

Dentre milhares de postagens de repúdio a essa medida, cito a da deputada Luciane Carminatti: “Aproveitar-se da pandemia para retirar a autonomia das Universidades e Institutos Federais é mais uma manobra desse governo. O congresso tem o dever de discordar da MP 979/2020. Gestão democrática é um direito conquistado. Respeito à comunidade acadêmica!”. (Instagram)  Isto mesmo: respeito à Constituição, aos professores, aos estudantes e à sociedade. Chega a dar fastio uma insanidade dessas.

Foi um susto. De imediato as instituições democráticas movimentaram-se na denúncia desta imposição, por ser inconstitucional e ao revés da democracia. Tanto que essa medida provisória foi tornada sem efeito. Revogada, desautoriza o ministro sem educação a nomear reitores, ignorando a comunidade acadêmica por violar a Constituição. Esse fato rocambolesco, uma verdadeira apoteose ao obscurantismo, é por si só um acinte à autonomia das universidades, um desrespeito à comunidade acadêmica e à sociedade. Trata-se de um paradoxo que beira o absurdo quando mais de mil pesquisas estão sendo desenvolvidas em laboratórios das instituições de ensino superior na busca de soluções e vacinas que combatam  e minimizem a Covid-19.

Esse fato me levou a refletir sobre o papel das universidades e os sonhos da maioria da população de cursar uma faculdade. Criadas há quase novecentos anos, no velho mundo europeu, nasceram ligadas a instituições religiosas. Com as reforma religiosas durante o Renascimento, aparecem as chamadas universidades modernas que adentram nos séculos seguintes, laicas ou não, consolidando o aprofundamento dos estudos e pesquisas. Com as mudanças e os ventos do novo milênio, vieram os caminhos democráticos, tanto na escolha de professores por concursos públicos, como de seus dirigentes. Era o ensino que se democratizava e ensinava que a escolha dos dirigentes é um direito, assim como é de direito que pessoas sonhem e alcancem uma profissão através da educação.

Dos sonhos que tive de menina, o maior deles era estudar. Minha primeira escola foi uma rural isolada e multisseriada em Vila Maria, interior de Nova Veneza, em Santa Catarina. Lembro de Lourdes Bonoto, a primeira professora que tive, quando desenhou no quadro negro com giz branco o mapa do Brasil e da Europa e ali foi pontilhando a rota das caravelas de Cabral. Fiquei extasiada! Ali me vi numa das caravelas, desbravando o oceano Atlântico. Hoje sei que eram meus primeiros desejos da liberdade   rumo ao desconhecido. Depois, no segundo grau, o professor João Colodel ensinou a vida dos esquimós, mostrou no mapa e desenhou um iglu. Pronto, lá estava eu gelada e vestida como esquimó! Sim, eu me embrenhei nos encontros com a História, mais tarde, e foi linda minha procura!

Quando cursava o segundo grau (hoje ensino médio), sonhava com um curso superior, mas me parecia tão distante dentro dos limites de minha vida interiorana e camponesa. Ao se aproximar o término do segundo grau, meus colegas de classe falavam no vestibular. Eu me calava. Sabia que as condições financeiras não me permitiriam realizar este desejo. Mas conversei com minha mãe e ela disse: “Vai estudar, minha filha. Estude para ser independente”. Juntamos nossas economias e, aos dezenove anos embarquei num ônibus rumo à cidade grande – Florianópolis – para fazer o vestibular. Lembro que a cada parada do ônibus eu perguntava ao motorista se já estávamos em Palhoça, lugar onde eu deveria descer e encontrar uma amiga que estava interna num colégio de freiras. Ela me levaria até a casa de uma tia, no Estreito, onde eu me hospedaria. Foi uma saga, tanto o medo de me perder quanto a emoção de conhecer a capital do Estado.

De sua casa, Marlene escreve primeiro no caderno para depois passar ao computador/Foto: arquivo pessoal

Bem, passei no vestibular – quanta ansiedade até o resultado! Quando ouvi meu nome através de uma estação radiofônica gritei e saí correndo pelas ruas: eu tinha passado no vestibular! Agora, nesta semana, falando com minha filha sobre esses episódios misturados a assuntos de eleições nas universidades, fui me dando conta do empenho de minha mãe quando saí de casa para estudar. Além das lides com afazeres da casa enquanto ela trabalhava como faxineira numa escola estadual, cuidava de meu irmão mais novo, um garotinho de quatro anos: chorei semanas de saudades dele e lhe tenho amor como o de um filho até hoje. Então penso: como ela se virou sem mim? Do jeito, como fez quando, depois de mim, saíram meu irmão e duas irmãs.

As mulheres buscam forças quando se trata de prover a vida dos filhos. Minha mãe era de aço, hoje eu sei.

Lembro com detalhes a primeira moradia de estudantes que na época chamava-se república: de ônibus, chegamos em cinco mulheres para uma casa já alugada pelo irmão de uma delas. Compramos colchões numa loja de móveis usados e dormimos sem camas por um tempo. Minha mala – daquelas grandes, altas, em napa xadrez, ainda sem essa grande invenção das rodinhas – trazia meus parcos objetos pessoais e mais da metade era batatas, verduras, aipim, frutas e o que tivesse na casa materna. E sonhos. Ah, quantos sonhos trazia na mala! Dentre meus guardados, encontrei um poema escrito em 1984, que diz assim:

Eu, apenas uma mulher
Indo em busca da vida
Eu, de carne e osso,
Desesperadamente lutando por um raio de sol
E nele, um pouco da dita felicidade.
Eu, trivialmente igual a qualquer gente
Levo um corpo e minha consciência.
Que me roubem as vestes
Quebrem-me os óculos,  
Mas não levarão minha liberdade!

Sonhava com a liberdade e não tive medo de ir atrás. Como já disse em algum lugar em outras crônicas, se me foi difícil sair de casa para estudar, não se compara às dificuldades das pessoas que não tiveram a mesma sorte: passar num vestibular, sair de casa para estudar e conseguir terminar a faculdade. Era início dos anos mil novecentos e oitenta, o Brasil começa a se redemocratizar. O curso de Ciências Sociais me dava os caminhos para a consciência de ser sujeito e ter direitos. Aí eu compreendi, por exemplo, o quanto a sociedade era excludente, e eu tinha a sorte de poder estudar, trabalhando oito horas por dia como secretária de uma associação odontológica. Comecei a questionar o porquê de não haver pessoas negras na minha turma, assim como era raríssimo vê-las nos corredores da universidade. A sociedade os excluía do acesso a um curso superior, ao mesmo tempo em que os invisibilizava como sujeitos. Não havia estudos sobre as populações afro-brasileiras nas bibliografias e, consequentemente, nos currículos dos cursos. O racismo é mesmo estrutural, dolorido, repugnante. Hoje tenho consciência de minha branquitude construída como lugar de privilégio.

Terminada a faculdade e fui morar em Navegantes para trabalhar como extensionista rural, já concursada. Saí desse lugar para ser professora, e então me encontrei. Os caminhos me levaram a fazer uma especialização e fui dar aulas na Univali. Compreendi o quanto e importante na vida das pessoas cursar uma faculdade,  e me emocionava com as lutas, as minhas e as de tanta gente. Um professor, Luiz Felipe Falcão, me avisou do processo seletivo para Mestrado na UFSC, mas eu não me achava capaz para tanto. Pensei por dias até que resolvi me inscrever. Passei em sexto lugar, quase tive uma síncope. Saí correndo pelos corredores da Univali e gritava: eu plantei batatas, e agora vou para o mestrado!!! Dois anos depois, surgiu o concurso na Udesc, de novo, me debrucei sobre livros difíceis por madrugadas durante um mês. Fui aprovada! Pensa numa pessoa feliz! Eu tinha então consciência da importância de uma universidade pública, democrática, plural e gratuita, graças a qual eu pude estudar por esse motivo. Mais tarde, apliquei-me a um doutoramento e minha liberdade se completava.

Essa digressão sobre meus caminhos até chegar a lecionar numa universidade pública tem relação com o susto e o medo do atual retrocesso sem precedentes na história das instituições de ensino com essa medida provisória infame. Se foi barrada é porque beira o caos das instituições democráticas. A democracia incomoda a quem? O lugar de produção de conhecimento e de tecnologias para tudo o que se tem contato no cotidiano incomoda a quem? Tudo provêm de pesquisas, estudos de casos, métodos científicos, descobertas que salvam vidas. Um plano nefasto, antidemocrático, contra as universidades teima em se consumar pela ignorância de um governo que se entende no controle de mentes e de corpos e à força de coturnos e armas.

As universidades são o coração de um país. Defenestrá-las é marginalizá-las, alijá-las do direito de existirem na sua efervescência criadora de ciência, e negar seu universo multicultural e de abrangência diversa. Diria que é um nacionalicídio, porque uma nação se faz com o coração e ele pulsa mais forte nos sonhos dos jovens. Assim como o é negar as mortes pelo invisível seboso e nefasto, ocultar as estatísticas e destruir nossos sentimentos de pertencimento a uma nação, mesmo que politicamente imaginada. Enquanto isso vem um (des)ministro e mistura ciência com o medo do comunismo. Um estrago na alma da gente.

Na minha vida nada se compara, em termos profissionais, à entrega ao meu oficio como historiadora e professora. Acompanhei as mudanças que elevaram as universidades a um lugar possível para os até então excluídos desse direito. Nos últimos anos, ou de uma década para cá, os corredores e bancos universitários se tornaram lugar de diversidades. Tive alunos e alunas de muitas etnias, raças, orientações sexuais, gerações e ideias diferentes. É emocionante sentir a procura dos jovens, sua gana por experimentar e viver o ambiente universitário, aprendendo a construir-se como gente que tem direitos.

Entrei na universidade com os sonhos de liberdade que trazia da infância. Briguei muito por democracia e direitos. Lutei por leis inclusivas para a diversidade que compõe este país, pelo direito à multiplicidade das ideias. Testemunhei conquistas através dos olhos vibrantes de alunos e alunas com suas descobertas e suas alegrias por estarem se formando. Sonhei seus sonhos, aprendi muito. Quero que continuem sonhando por liberdade e a tenham nos seus direitos de uma educação em plena democracia.

Nossas armas são a consciência de que justiça social, cidadania, liberdade e oportunidades são possíveis. Lutemos, pois!

Marlene de Fáveri, 14 de junho de 2020. Florianópolis.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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