Crônica da incontingência da clausura (12) – ou, de quarentenas, partos e memórias
A colunista lembra-se de outras quarentenas, aquelas dedicadas ao pós-parto
Domingo, trinta e um de maio de dois mil e vinte. Me dei conta que o mês de maio já é passado. Hoje faz setenta e três dias de clausura. Era dezoito de março quando “estourou” a bomba do confinamento obrigatório e necessário em Santa Catarina. Nesta semana fez frio de doer os ossos dos dedos e avermelhar o nariz; tinha esquecido como faz frio aqui no sul profundo. Minha mãe parece não sentir tanto quanto eu, talvez porque se acostumou aos trabalhos inadiáveis e necessários à reprodução da vida desde antes do sol nascer, fizesse o frio que fosse.
Nestes dias, estivemos na horta e tiramos ervas daninhas que teimam em crescer mais que as plantas; e já colhemos rúcula e rabanete! Minha mãe cansa logo, e reclama: “mas eu tenho tanta coisa para fazer e não estou fazendo nada de útil”. Eu digo que passou oitenta anos fazendo tudo, agora tem que deixar que os outros façam as coisas. A cultura do trabalho está impregnada, uma cultura da educação camponesa numa colônia italiana, onde o ócio era sempre perder tempo.
Os limões amadurecem rápido, e o vento derruba abacates e nozes. Estas últimas minha mãe recolhe e, pacientemente, quebra a casca com um martelo, separa a parte comestível e armazena; faz muitos anos que temos nozes em casa, colhidas assim. Guevara e Tchê continuam a me barrar os passos, com olhar de esfomeados mas também ternos e carinhosos – estou me apaixonando por eles, logo eu que não curtia gatos!
Do atordoamento inicial quando a pandemia chegou até nós, e já que estava no interior com minha mãe, resolvi vestir a camponesa e ajeitar as árvores, os arredores da casa. E costurar máscaras para doar. O primeiro mês passou entre saudades e um desalento com as notícias que davam medo. Com o passar das semanas seguintes, as estratégias para proteger-me, e à minha mãe, foram sendo experimentadas de forma que agora fazem parte de meu cotidiano: sair de casa só o necessário, aproveitando uma única saída para resolver tudo; usar máscaras assim que ponho o pé fora de casa e embebedar as mãos.
Uma vez na rua, no mercado, na farmácia, no banco, tomo todo o cuidado e distanciamento. Antes era comum conversar nas filas, nos balcões das lojas, nos encontros de rua; agora, paira um silêncio de afogar a vontade de perguntar, falar, futricar. A distância entre as pessoas e o uso da máscara nos inibe, limita e nos faz olhar com certas desconfianças.
Voltar da rua preordena outro ritual: trocar o calçado, lavar as mãos, lavar ou alcoolizar tudo o que trouxe, lavar a máscara e se certificar que tudo o que encostou é higienizado: bolsas, roupas, sacolas plásticas, partes do carro onde manuseou. Ufa, uma trabalheira feita sob tensão. O cotidiano sofreu um avario, saiu do prumo, interferindo nas nossas práticas usuais, bem como nos limites da liberdade para encontros afetuosos. É angustiante.
Todavia, se a palavra angústia significa sofrimento, aperto, sufoco, neste momento pandêmico o sentido se alarga com as incertezas dentro de uma crise política sem precedentes na história do Brasil e a consequente crise econômica e de valores. Graciliano Ramos, lá em meados dos anos mil novecentos e trinta, misturando à crítica social a dor do amor e do abandono, disse das mentalidades conturbadas em época de mudanças, numa obra que chamou de Angústia. Vivemos essa angústia do estranhamento do devir, na desconfiança e nas incertezas.
Na semana que passou, circulou nas redes um pronunciamento do presidente da Argentina, no qual pergunta: “É angustiante salvar-se?”, referindo-se às angústias sentidas pelas pessoas em afastamento e quarentenas. “Angustiante mesmo”, disse ele, “é ficar doente e não poder salvar-se e o Estado te abandonar”. Concordei. Resignei-me a meu claustro. Isso me leva à inconcebível e criminosa forma como o mandante deste país tupiniquim debocha dos mortos e suas famílias, como lida com desprezo às medidas de higienização e preservação da vida.
Estamos sem rumo, sem leme, sem comando, sem projetos nem medidas para conter o avanço da pandemia. Que destino, que tragédia anunciada.
Dia desses, numa conversa sobre a quarentena e o Covid-19, fez minha mãe misturar esta às suas quarentenas pós-parto: “Ah, eu fazia de tudo. Tinha os filhos e no outro dia já estava de pé, fazendo os serviços”, disse. Num surto da memória a vi ali sentada à mesa como a vi há meio século, acostada para um mísero descanso em seu vestido claro de listras azuis esticado e grávido. Esse detalhe marcou minha infância e grudou em minha memória, tanto que em meados da década de mil novecentos e oitenta, registrei essa lembrança com o que foi o quarto rebento de minha mãe:
Os vestidos de minha mãe eram dois
Listrados, com pregas no ventre.
Lavava, cozinhava, costurava,
Capinava, plantava e colhia.
Era calor de novembro e ela
Sentia pontadas do que era seu
Quarto rebento – ela sofria.
Eu achava que ela era de aço.
E, assim, veio Maria.
A conversa entre mulheres à mesa esticou e, sem noticiários atrapalhando, já que desligamos a televisão, ela comparou quarentenas: “Mas era diferente, a gente não ficava dentro de casa”.
Sua memória correu para o passado e seus olhos marrons visualizaram um infinito cone, e dali retirou detalhes de minha vinda ao mundo: que eu fui apartada de seu ventre pelas mãos de sua mãe, a nona Henriqueta, que era parteira “desde sempre”.
Eu custei para nascer, minha mãe passou muito mal, tanto que, logo após o parto, a levaram de carroça para o hospital de Meleiro – e lá fui registrada por meu pai, tanto que sou meleirense na identidade – onde ela ficou para refazer-se. Era seu primeiro parto.
Trago na memória imagens da minha nona, mãe de minha mãe, por vezes saindo apressada com alguém que vinha chamá-la para atender a uma parturiente a qualquer hora do dia ou da noite. Saia a pé, de carro de boi ou aranha (carroça), com sua bolsa de apetrechos e umas providências, já que não podia prever quando voltaria. O trabalho voluntário de parteira fazia parte de suas convicções religiosas, e jamais negou auxílio na “boa hora” de uma mulher, fosse quem fosse.
E ela cuidava que as parturientes tivessem um descanso, uma “pequena quarentena”, dentro do possível, e ficassem bem antes de minha nona voltar a seus inúmeros afazeres de uma família numerosa.
No dia de seu enterro, e faz uma década, em cima da hora foi-me atribuída a tarefa de falar sobre minha nona em homenagem. A pequena igreja de Vila Maria estava lotada de pessoas que a conheciam desde sempre, o que aumentou a minha responsabilidade de tirar da memória um pequeno discurso. Então, olhei-a com as mãos cruzadas e segurando um rosário, me veio uma ternura imensa e falei sobre as mãos que ali, no caixão, segurando o rosário, eram as mesmas que apartaram-me do ventre de minha mãe, e também fizera o parto ou apartara a maioria das pessoas presentes naquela cerimônia de despedida. Senti olhos marejando, como os meus, por toda gente ali na igreja.
Naquele tempo, não faz muito porque eu era menina, uma urgência por um acidente de trabalho, ou os quase anuais partos das mulheres da casa e da vizinhança, já que era prescrito que fossem parideiras, desde o ocorrido até chegar a um socorro era um transtorno. Havia que buscar um cavalo ou boi na pastagem, encilhar ou cangar, juntar pertences necessários e partir. Morávamos a uma distância de 20 quilômetros até o hospital próximo, por estradas de terra, não raro com buracos, pedras, rios e morros, o que dificultava o deslocamento. Nem sempre dava tempo de chegar ao destino, e mulheres passavam mal, crianças nasciam no meio do percurso e, infelizmente, muitas mulheres morriam em condições inóspitas, sofrendo com dores e pontadas.
Minha mãe disse que pior que não ter quarentena era que “levavam para o hospital somente em último caso, e muitas morriam assim”. Sua memória sobre quarentena é associada a partos, temores, receios e distâncias. Ela lembra: “A primeira mulher de meu pai morreu em casa. Ela tinha cinco filhos, e no sexto passou mal e morreu, mas salvaram a criança”. Salvar a mãe era importante, tanto quanto salvar a prole, que seriam mãos para cultivar a terra. Filho homem era sempre bem-vindo, já que o costume era que um filho homem cuidasse dos pais e reproduzisse a família numerosa, com uma esposa trabalhadeira e parideira.
Do primeiro parto, principalmente, esperavam que fosse homem; quando eu nasci, minha mãe ficou feliz, mas não sabe se os outros ficaram.
Nem sempre meninas eram bem-vindas. Me contou, dia desses, uma camponesa aqui em Turvo: “Quando nasci, meu pai perguntou se era menino ou menina” e, ao saber que eu era menina, disse: “então, manda de volta para o mesmo buraco de onde ela saiu”. Desde então ela vive com uma “mágoa funda” que lhe deixou a cicatriz que a memória do corpo e da alma não desfaz. Fruto do machismo advindo de uma cultura e educação de desqualificação das mulheres por não serem consideradas provedoras, esse pensamento perdura em muitos lugares.
Há estudos sobre mulheres viúvas – pensão, ressignificação após a viuvez, viúvas da ditadura, etc – mas desconheço que se tenha escrito sobre viúvos, especialmente do meio rural. Era comum que o viúvo logo buscasse outra mulher para a reprodução da vida, os cuidados com os filhos órfãos da mãe, os afazeres domésticos e da produção. Meu nono, viúvo da primeira mulher, casou com a jovem cunhada, minha nona, que viveu para trabalhar, rezar e parir.
Com certeza alguns homens tiveram que aprender na marra a tomar providências na urgência de um parto a caminho, quando as acompanhava. Na educação dos homens, as “coisas de mulheres” passavam ao largo, e os cuidados com os recém-nascidos eram expressamente atribuição expressa das mulheres do campo. Quando um bebê chorava, meu pai, se escapulia rapidinho do quarto e ia dormir em outro lugar. Como já disse, os corpos dos recém-nascidos e dos mortos pertencem às mulheres, assim como os cuidados com os doentes e os velhos. Quantas de nós estamos agora lidando com essa urgência? Com o isolamento, espera-se que tomemos conta dos cuidados com os filhos, os idosos, os doentes.
Na conversa sobre a quarentena, comparando a que nos obrigamos hoje e a das mulheres quando pariam, surgiram relatos de violências e dores. Minha mãe, Rita, a cuidadora de minha mãe e eu contamo-nos nossas impressões, as de ontem e as de hoje, sempre calçadas nas experiências que vivenciamos. Mulheres como minha mãe que passaram por muitas provações e sabem da dor e das perdas, se solidarizam com as tantas mortes – hoje contabilizamos em torno de trinta mil mortos no Brasil, e minha mãe se angustia. “Que tristeza para tanta gente”, disse ontem, numa dor que parecia consigo, ouvindo o noticiário.
Passados setenta e três dias desde que a pandemia entrou nas nossas vidas, ou na minha mais especificamente, já nos acostumamos a ouvir nos noticiários sobre os óbitos que aumentam numa média de mil diariamente, sobre contágios e estatísticas, sobre a falta de respiradores, sobre enterros coletivos e superlotação de hospitais chegando quase a uma impensável banalização da dor. Também estamos nos acostumando aos noticiários da já insuportável disputa pelo poder por parte do governante verdugo e seus asseclas, num jogo de forças entre os poderes e os discursos com o amontoado de palavrões exacerbando a masculinidade tóxica com a qual move o destino triste desta nação. Atabalhoados, assistimos à reunião ministerial que mais se pareceu com uma seita mafiosa, uma vergonha de dar angústia, um acinte à nação. Não, não merecemos esta desordem, esses monstros a nos afligir no bordejar da pátria que já foi mãe gentil.
Continuo com todas as saudades, embora elas vão mudando o tom dos sentidos. Estou quase me acostumando com coisas urgentes resolvidas pela telinha, o que é insano. Não, não quero me acostumar com isso.
Vou pedir pela terceira vez: Santa Rosália, padroeira de Palermo, devolva nossos desejos ardentes sem medo, nossos afetos em forma de abraços. Repita o milagre e expurgue essa pandemia!
Marlene de Fáveri, Turvo/SC. 31 de maio de 2020.