Brasil segue sendo o país do transfeminicídio
A violência contra a comunidade trans é alimentada por um ambiente cotidiano e político hostil, onde a transfobia se espalha sem limites.
A transfobia diariamente movimenta as redes sociais. É tema frequente nas campanhas eleitorais nacionais e internacionais, em fóruns da ONU, debates partidários, em feiras literárias, em conversas de bar, no noticiário e nas escolas, atravessando tanto a esquerda quanto a direita. Se fazendo presente também em espaços progressistas, no feminismo e em outros movimentos que lutam pelos direitos humanos. Para além das discussões, sendo socialmente aceita em diversos círculos sociais, de forma que é reproduzida e passada de geração em geração sem qualquer constrangimento.
Como já vinha sendo anunciado pelos movimentos trans nacionais, devido ao contexto geral onde prevalece a agenda antitrans e a falta de ações efetivas do Estado, o Brasil segue como o país que mais assassina pessoas trans no mundo, pelo 16º ano consecutivo. É que aponta a atualização publicada pela Transgender Europe (TGEU) obtida em primeira mão pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
O projeto Trans Murder Monitoring (TMM) começou a monitorar assassinatos trans ao redor do mundo em abril de 2009, como uma cooperação entre a Transgender Europe (TGEU) e a revista acadêmica online Liminalis – A Journal for Sex/Gender Emancipation and Resistance. Posteriormente, o TMM tornou-se um projeto de pesquisa “Transrespect versus Transphobia Worldwide” da Transgender Europe, em setembro de 2009.
Realizado pela equipe do Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), o “Observatório de Pessoas Trans Assassinadas Globalmente” é um boletim da TGEU publicado anualmente por ocasião do 20 de novembro, Dia Internacional da Memória Trans (Trans Day of Remembrance). Que atualiza os casos de assassinatos contra pessoas trans ao redor do mundo. Desde que o relatório foi criado, em 2008, o Brasil vem mantendo a liderança entre os países nos quais a transfobia faz o maior número de vítimas.
América Latina e Caribe, mais uma vez, foi a região com mais casos, chegando a 70% do total. Com aumento de cerca de 9% em relação a 2023, foram catalogados 350 assassinatos na atualização, e pelo menos 106 aconteceram no Brasil, o que representa 30% do total – em 2023 haviam sido 100. Dentre eles, 94% foram feminicídios onde as vítimas eram mulheres trans ou pessoas transfemininas. Os dados foram coletados entre 1º de outubro do ano passado e 30 de setembro deste ano. O México segue em segundo lugar e o Estados Unidos em terceiro com 76 e 41 assassinatos cada.
O perfil das vítimas permanece sendo a maioria de mulheres trans e pessoas transfemininas jovens, negras/racializadas e vivendo publicamente suas identidades de gênero.
Do total, 93% dos assassinatos relatados foram de pessoas trans negras ou racializadas, um aumento de 14% em relação ao ano passado. E entre aqueles dados que tinham idade disponível, um terço das vítimas tinha entre 31 e 40 anos, e um quarto tinha entre 19 e 25 anos.
Cabe destacar que, desde o início desse monitoramento, a vítima mais jovem de assassinato no mundo foi Keron Ravache, adolescente trans brasileira de 13 anos. que foi brutalmente assassinada com requintes de crueldade no Ceará em 2021.
O quadro de violência contra pessoas trans no Brasil é alarmante em todas as fases da vida. Anualmente, centenas de pessoas perdem suas vidas devido a crimes motivados pelo ódio, transfobia e discriminação. A ausência de políticas públicas eficazes e direcionadas para combater essa realidade tem contribuído para a continuidade dessas tristes estatísticas, fazendo do Brasil um dos países mais inseguros para pessoas trans.
A pesquisa também revelou que 34% dos assassinatos relatados foram por armas de fogo, 46% das vítimas atuavam como profissionais do sexo e as ruas continuam sendo o espaço de maior incidência dos assassinatos.
Em um país marcado pela desigualdade e por ímpetos fascistas, a violência vem sendo percebida de forma mais intensa e organizada contra grupos vulnerabilizados e em situação de pobreza, como jovens negros, mulheres vítimas de feminicídio e violência doméstica, pessoas LGBTQIA+, candidaturas progressistas, entre outros. Esses grupos se tornam alvos diretos de agressões, alimentadas por desigualdades de classe, raça, gênero e território, além do ódio transmitido ao longo das gerações contra sexualidades e identidades dissidentes. Esse ecossistema do ódio tem elaborado a trágica “receita de morte” que permanece naturalizada como parte da herança colonial.
Desde 2017, a Antra mapeia anualmente dados de violências e violações de direitos humanos contra pessoas trans, devido à omissão do Estado. No ano passado, pelo menos 145 pessoas trans foram assassinadas no Brasil de acordo com o Dossiê da Antra publicado em janeiro de 2024. Entre 1 de janeiro e 31 de outubro de 2024, pelo menos 85 pessoas trans foram mortas.
Seus relatórios anuais revelam que, assim como ocorre em outros países, a maioria das vítimas trans assassinadas são travestis ou mulheres trans negras, com média de idade de 29 anos. A comunidade trans brasileira está cansada da inércia do Estado e exige medidas concretas para combater as violações de direitos humanos.
Os impactos disso
A violência contra pessoas trans no Brasil não pode mais ser tolerada, especialmente quando é alimentada pela crescente agenda antigênero, liderada por figuras como Donald Trump – que somente em sua campanha de 2024 destinou mais de 215 milhões de dólares em propagandas antitrans, Elon Musk e J.K. Rowling, além de políticos da extrema direita e grupos antitrans alinhados ao terfismo, à maternidade transfóbica e a outras ideologias cissexistas.
O ódio às pessoas trans fortalece um sistema que valoriza apenas quem segue as normas impostas no nascimento, marginalizando identidades e justificando a violência contra elas. Ódio que cresce enquanto se cria um espantalho: o “identitarismo” como bode expiatório para justificar o fracasso de um projeto neoliberal, que celebra a individualidade e pretende manter a hegemonia do grupo mais identitário de todos que é a cisgeneridade, branca, cristã, e heterossexual com síndrome de vira-lata.
Na luta diária pela sobrevivência e cidadania, a comunidade trans enfrenta o descaso de uma sociedade que busca deslegitimar suas reivindicações e calar essas vozes com acusações de atrapalhar a “verdadeira revolução”, a “luta de classes” ou “dos trabalhadores”. Compreendemos a mensagem subentendida nessa acusação: tem o intuito de enfraquecer nossos movimentos e dificultar nossa presença em espaços onde poderíamos construir respostas efetivas para os problemas estruturais que nos afetam profundamente como sociedade.
A população trans brasileira vive o impacto de uma sociedade que nega ou não se importa com seus direitos básicos e sua dignidade, reforçando a necessidade de ações imediatas do Estado para garantir seu direito à vida, à liberdade, à felicidade e à segurança.
Os reflexos dessa realidade são crueis: jovens trans se sentem menos otimistas em relação ao futuro, saem menos de casa, evitam usar transportes públicos e sentem medo de acessar serviços de saúde. Além disso, a exclusão é reforçada em escolas e universidades, no mercado de trabalho e até em espaços públicos, onde pessoas trans são humilhadas, expulsas de banheiros e enfrentam ataques constantes.
Atualmente, há pelo menos 77 leis antitrans em vigor no Brasil, que dificultam ainda mais o acesso de pessoas trans a direitos básicos, enquanto milhares de postagens de ódio circulam impunemente nas redes sociais, normalizando essa violência. Esse ambiente hostil leva muitas pessoas trans ao autoextermínio e agrava sua saúde mental, física e social, especialmente para travestis e mulheres trans negras, que enfrentam níveis ainda maiores de rejeição social.
Uma pesquisa publicada na revista Neurology, da Academia Americana de Neurologia, mostrou que pessoas que pertencem a minorias sexuais e de gênero apresentam uma chance 14% maior de desenvolver demência e um risco 27% mais alto de depressão na velhice em comparação a pessoas cisgêneras e heterossexuais. O estudo também identificou que mulheres trans têm uma probabilidade 68% maior de sofrer um acidente vascular cerebral, diferença que não foi observada em outros grupos LGBTQ+.
Questões como preconceito de profissionais de saúde e discriminação social foram observadas como fatores que podem afastar esses pacientes dos cuidados preventivos e tratamentos necessários, agravando os riscos de demência e depressão. Além disso, o estresse constante ante a discriminação e o medo gerado por contextos políticos adversos, incluindo aumento de legislações anti-LGBTQIA+ e alta recorrência de crimes de ódio e violações de direitos humanos, contribuem para a deterioração da saúde mental da população trans, impactando inclusive a expectativa dessa população que já sabemos ser extremamente baixa. E que pode contribuir para uma análise mais aprofundada sobre os altos índices de suicídios entre pessoas trans.
A vida de pessoas trans é constantemente ameaçada e silenciada, exigindo respostas do Estado e da sociedade. É hora de o governo, a sociedade civil e cada cidadão se comprometerem a reverter essa situação. Precisamos de investimentos em programas de educação que promovam a diversidade de gênero e combatam a transfobia desde cedo, além de treinamentos nas forças de segurança para lidar de forma qualificada com a população trans e combater crimes de ódio, assim como assegurar o acesso à justiça.
A coleta de dados sobre crimes transfóbicos deve ser aprimorada, e o acesso à educação — incluindo saúde mental, cuidados sexuais e reprodutivos e tratamentos para (re)afirmação de gênero — deve ser garantido de forma digna e não patologizante.
É urgente promover políticas de inclusão no mercado de trabalho, criar centros de acolhimento para pessoas trans em situação de vulnerabilidade, como aquelas em situação de rua, e reforçar leis que proíbam a discriminação por identidade de gênero, com punições rigorosas para crimes de ódio.
Há em curso, um projeto político, jurídico, social e econômico que visa erradicar as pessoas trans da vida pública. No entanto, no Brasil, esse projeto tem falhado, pois apesar dos altos índices de violência, a comunidade trans está organizada, ocupando espaços de poder, e conquistando direitos.
Nosso compromisso vai além de questões individuais: é pela transformação de uma realidade marcada pela exclusão, discriminação e violação de direitos. É por isso que a comunidade trans segue se levantando, exigindo não apenas inclusão, mas ações concretas que garantam dignidade, segurança e justiça para todas as pessoas trans no Brasil. As vozes e as demandas da comunidade trans devem ser ouvidas e atendidas para que suas vidas e direitos sejam protegidos.
Basta de transfobia. A vida de pessoas trans importa, e é hora de agir.