“Cidade invisível”, a primeira série brasileira de fantasia lançada há poucos dias pela NETFLIX, alcançou quase de imediato um dos primeiros lugares entre as mais vistas aqui e em vários outros países. Por dentro desse feito notável, há muito de uma visão que aprofunda e atualiza mitos do nosso folclore – e oferece, ainda, um olhar especial sobre os papéis das mulheres em nossa sociedade.
Nesse sentido, a série dispensa as fórmulas prontas e já tão mais conhecidas da mitologia nórdica, e consegue criar uma trama político-social que penetra no imaginário de alguns dos personagens nacionais mais folclóricos e, com isso, traz à tona, com originalidade e emoção, os conflitos ambientais, sociais, culturais e políticos que estão cada vez mais na ordem do dia.
A série começa com a morte da antropóloga Gabriela num incêndio durante uma festa popular na mítica Vila Toré, cravada no meio de uma floresta com a qual a comunidade mantinha uma relação profunda e crescentemente ameaçada. Seu marido, Eric, é um policial ambiental que não se contenta com a indiferença e a ausência de investigação a respeito do misterioso incêndio que causou a morte da mulher e, ainda, espantou os moradores já pressionados e desistir do lugar. Ao mesmo tempo, está cada vez mais confuso sobre como cuidar da filha, Luna, abalada após a terrível perda da mãe em uma festa na qual estavam juntas.
Buscando, então, levar a cabo uma investigação sobre o ocorrido, o personagem passa a se ver diante de uma série de eventos que escapam ao seu aparente ceticismo e o aproxima dos mistérios e da sabedoria da comunidade local, que até então vinha sendo objeto de pesquisa e admiração da própria Gabriela. Nesse percurso, as figuras lendárias vão se revelando a cada passo e se mostrando cada vez mais centrais para se pensar não só no sentido dos acontecimentos locais, mas também na natureza e na história dos seres humanos com os quais passam a interagir.
Nesse contexto, sobressaem mais duas personagens femininas fortíssimas: Inês e Camila, que recuperam e revelam muito da violência e das forças ocultas que têm forjado o destino de tantas mulheres em nossa cultura.
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Inês, por exemplo, após ter sido abandonada pela família ao ter engravidado sem marido, acaba parindo um filho morto sozinha, no meio da floresta – e é a dor dessa perda radical que a faz se transformar na criatura que iremos conhecer como Cuca. Essa entidade, nessa versão à qual somos apresentados, não só recupera a sabedoria da floresta a partir da mistura de plantas e de magia, mas também se torna uma espécie de mãe de todas as criaturas como ela. Por isso mesmo, na série, a Cuca é apresentada como uma entidade poderosa e temível, mas está longe de ser uma vilã – e muito mais próxima de ser uma mulher sábia, misteriosa e fascinante, que guia e protege as demais criaturas. Contribui muito para isso o desempenho excepcional da atriz Alessandra Negrini, espantosamente linda e inquietante como a famosa bruxa.
Camila, por sua vez, é a Mãe D’ Água ou Iara, e tem sua origem explicada por ter sido assassinada pelo homem que amava e largada no mar. A partir disso é que se torna uma sereia aprisionada numa missão de vingança, que passa a ter um poder absoluto de sedução a fim de hipnotizar homens com o seu canto e os arrastar para as profundezas do mar. Um dos grandes pontos altos da série, aliás, é o episódio em que ela aparece cantando no Bar Cafofo uma versão intimista e sombria da música “Meu sangue latino”, explorando e ressignificando, ali, e com um brilho ofuscante, todos os sentidos que essa letra vinha tendo. A qualidade da trilha sonora, inclusive, segue essa linha em muitos outros momentos, e meio que desvenda sentidos inusitados e profundos de várias outras canções contemporâneas. Merece destaque, ainda, a atuação fascinante da atriz Jéssica Córes, já considerada a nova estrela da Netflix.
“Cidade Invisível” também me parece especialmente genial ao não cair na dicotomia fácil entre realidade e mito, fortes e fracos, o bem e o mal. Essas linhas são, sempre, tênues e delicadas demais para marcarem em que lado cada personagem está. Assim, o que tem de mais real na narrativa é justamente a quebra desses limites e a sua expansão laboriosa para os espaços que existem entre eles. Não é, portanto, Inês/Cuca que é má, tampouco Camila/Iara: o perigo e a maldade, muito diferentemente, estão muito mais é na violência costumeira da sociedade contra as mulheres na exploração predatória e brutal das terras brasileiras e de todos que estão nela.
A série recém lançada, portanto, recupera um Brasil que pode estar se perdendo, mas que resiste de todas as maneiras e que luta para existir e ser maior. Com roteiro, atuações, trilha sonora e figurino impecáveis, a série ousa e acerta ao falar do que tem de mais profundo a atual nas velhas lendas populares – e, nesse caminho, nos obriga a rever o que pensávamos sobre entidades femininas míticas que ousavam desenvolver seus próprios poderes vistos então como “malditos” numa terra que as condenava a ser nada além de costumeiras vítimas fatais.
* Elisabetta Mazocoli é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisa tensões e confluências entre imprensa feminina e feminista. Seu principal interesse é o jornalismo cultural e a crítica cinematográfica. Mantém um perfil chamado @travessia.literaria no instagram. E-mail: [email protected]