Por Kelly Vieira*. 

Instigada por um mediador do conhecimento que leciona sobre o pensamento social brasileiro, fui levada à reflexão sobre as fontes que me constituíram sujeito no mundo: “Quais as referências da brasilidade que encalacraram a tua alma do simbólico ser brasileiro?” A partir desta questão descambou em mim as cores de um passado que me é presente, as marcas desse Brasil que escapam de ser ele próprio, Brasil.

Minhas referências de infância trazem as matizes do religioso. A minha adolescência recebeu o brilho da erotização. Já a minha juventude foi um misto de mitos e ritos invadindo o espírito com suas formas bruxaícas de contemplação. Simples quanto aquele preto envernizado dos sapatos que a passos largos me colocaram frente a frente com o espetáculo da morte. Está aí o nó que espanta a paz do meu espírito nas vezes do saber-me brasileira. O que pode ser facilmente explicado ao me dar conta que a religiosidade veio até mim de um mundo fantástico onde uma virgem dá luz a um ser que é morto na cruz, e por este é justificado falar, demagogicamente, de um mundo que caminha para um além mundo no qual todos nós brincamos, inclusive com os mortos que fabricamos. Não à toa, lá, em plena fantasia do bem, daremos as mãos àquele a quem fizemos morrer quando “aqui” não o aceitávamos pelo simples fato de ser diferente de nós. As mortes são sempre justificadas pelo viés discursivo do “não prestava”, como se fruta podre não tivesse dado ao homem o bel prazer das dosagens etílicas que amortecem o corpo e distanciam o cérebro da realidade, inclusive para se ver na ignorância do conviver. Depois me vieram os mitos através dos ritos e eis que estou aqui: “sã” e viva.  Ao menos viva, já que a condição de sã me escapa algumas vezes no desequilíbrio do blefe.

Mas bem, quero discorrer sobre a dificuldade de obter os pedacinhos deste Brasil já que o passado lhe mantém refém de si mesmo. Enquanto isso eu vou caminhando por conta própria pelas intrigantes narrativas de Nelson Rodrigues que diariamente arrastam a minha cara no asfalto, e me vestem de branco, virgem e casta, para saciar minhas perversões mais delirantes. Tomo outro Brasil, agora de Clarice Lispector que com sua paixão me fez perceber o quanto o espaço privado é mais conhecido por aqueles que a ele não pertencem, como no caso da proprietária que no dia da ausência da empregada enxerga-se à beira da loucura pelo leite frio de uma barata. Ou Macabéa, que de tanta fé e tanto sonho depara-se com o derradeiro objetivo da vida, morrer. Brasis de Drummond, de Sabino, de Bandeiras, de Rubem Braga… Brasil de Carla Dias, de Colasanti, de Martha Medeiros… Brasil que até no mais encantado romance ou conto se mistura nas violências, mutilado pela raça, usurpado pelo canibalismo que por aqui ninguém viu, só se sentiu na risada medonha do colonizador que nos tomou de assalto e na nossa boca deixou as desculpas justificadas do submundo, sim senhor.

Onde estão nossas senhoras, nossas donzelas, nossas mulheres aguerridas, nossas índias? Pintadas e sendo reproduzidas enquanto porções retificadas, nos vendendo aos pedaços pendurados nos açougues do turismo libertino que, por aqui, só é feio se for com menino, mas, do contrário não te preocupes colonizador, elas foram feitas à subserviência. Se nos são escassos os pedaços de brasilidade, ainda mais minguados são os inteiros da regionalidade. Não é por acaso que repetimos o mesmo medo do mensageiro em Macbeth, que só no deserto se pronunciaria para evitar o perigo de outros ouvidos encontrarem os fatos.  Mas assim como no drama a sentença é colocada – por mais que seja da Escócia a estória, para o Brasil é verdadeira a inglória: o belo é podre, e, podre, belo sabe ser. Assim somos nós falando de um Brasil plural que na primeira oportunidade verbaliza no jeitinho brasileiro:

– Só podia ser nordestino

Baiano

Cearense

Paulista

Paranaense

Carioca

Gaúcho

….gay, viado, pobre, preto, velho, bicha, sapatão, mulher, gordo, malandro, maconheiro, traveco…..

O Brasil samba que dá, bamboleio que faz gingar, o Brasil do meu amor, terra de nosso senhor: o colonizador.

Kelly é estudante de Ciências Sociais, presidenta do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres, em Florianópolis, e integrante do Portal Catarinas.

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