Por Priscila Costa Campelo Alves*

Em memória de Maria Sandra da Silva Costa

26 de outubro de 2020: há cinco meses recebi uma ligação desalentadora que me deixou completamente estática e sem saber o que fazer. Era minha tia, minha única tia que, em apelo desesperado, implorava por ajuda pois sofria com dores excruciantes provocadas pela falta de circulação e que levou à abertura de uma pequena lesão em sua perna, bastante dolorosa e característica de pessoas portadoras de diabetes.

Minha tia só queria ser examinada por um médico, queria uma prescrição que aliviasse suas dores; as físicas e as da alma. Levava alguns meses presa em casa, isolada e com medo do algoz que ronda e ameaça humanos de saúde mais frágil. Idosos, imunodeficientes, obesos, diabéticos, pessoas pobres. Todos apavorados enquanto os mais saudáveis gozam de liberdade e desfrutam de uma pseudonormalidade.

A eugenia massiva dos anos 2020.

O medo da Covid e a depressão agravada pelo isolamento, a impediam de buscar tratamento em hospital, como sempre fez em ocasiões anteriores, quando padecia das úlceras nas pernas. O martírio de minha tia estava apenas no começo, pois o tratamento em casa era inviável e pouco eficiente.

A evolução da úlcera, associada às dores e nossa insistência, finalmente a convenceu a aceitar a internação hospitalar. Entre lágrimas e medo, exatos dois meses depois daquela ligação, minha tia se internava para dar início ao tratamento. Era dia 26 e dezembro, um dia após o Natal, que ela tinha implorado para ficar em casa com a família.

O atraso no tratamento foi crucial para o avanço da necrose e minha tia perdeu o Tendão de Aquiles, o que a impedia de caminhar sozinha e lhe provocava ainda mais desespero. A depressão piorou e ela, que tanto gostava de conversar, já não atendia ligações, não aceitava sair da cama, não comia bem nem tolerava as sessões de fisioterapia e psicoterapia. O declínio físico e psicológico veio e, com isso, a evolução de outras úlceras, agora nos pés.

O medo da Covid-19 e de uma nova “mutilação”, como ela chamava o procedimento que removeu o seu tendão, a impedia de aceitar o retorno ao hospital. Embora tentássemos, de todas as formas, convencê-la da necessidade de internação, não havia acordo. Minha tia sabia dos riscos, mas tinha medo. Medo de ter os pés amputados e cair em um abismo maior ainda de dependência, insegurança e vergonha. Preferiu esperar a morte chegar em casa. Durante todo esse tempo, chorava, clamava, pedia para morrer. A dor de viver sem os pés e o medo do coronavírus pareciam maiores.

Embora quisesse, não pude fazer nada além de tentar, em vão, convencê-la. No entanto, como nenhum paciente consciente e orientado pode ser obrigado a submeter-se a tratamento médico contra sua vontade (Resolução 1995/2012 CFM), nos restavam os cuidados paliativos e esperar.

O avanço da infecção, a depressão e a falta de vontade de viver, conduziram à desorientação e perda de consciência, quando enfim pudemos interná-la. Com a taxa de ocupação de leitos extrapolando os 100%, conseguimos, quase por milagre, uma vaga em um hospital particular na cidade. Era dia 20 de março.

Hoje completam 5 dias da partida de minha tia por complicações do pé diabético que evoluiu a um quadro de septicemia e lhe tirou a vida aos 65 anos. Minha tia não entrará nas estatísticas, para todos os fins de direito, ela não pertence aos 314 mil brasileiros que tiveram suas vidas interrompidas pelo coronavírus mas, certamente, estaria entre nós ainda hoje se não fossem os danos colaterais de uma doença que ameaça, como um serial killer, aos mais frágeis.

Embora não faça parte das estatísticas, assim como um paciente de Covid-19, minha tia morreu solitária, em um leito de UTI, longe de seus entes queridos e inconsciente. Cercada de poucos e, embora não fosse acometida pela doença, seu funeral foi igualmente triste e solitário, assim como seus últimos meses. Seus amigos e alguns familiares, também amedrontados, não puderam ou não quiseram estar presentes temendo aglomerações e contágio.

Como se não bastasse, a pandemia também me impediu de vê-la. Eu não pude estar lá, não pude segurar sua mão, nem ouvir suas últimas palavras. Não pude prestar minhas últimas homenagens à segunda mulher mais importante da minha vida. Ela se foi e, assim como outras milhares de famílias brasileiras, minhas irmãs, minha mãe e eu hoje choramos a perda prematura de mais uma vítima colateral da pandemia.

Ela não soube, mas a vacina para sua faixa etária chegou no dia de sua morte. Já era tarde.

Ela não vai entrar nas estatísticas, mas a pandemia levou minha tia. E como ela, muitas outras não entrarão, mas também fazem parte do legado de sangue da Covid-19.

São as vítimas secundárias. As que morrem diariamente de outras doenças, de inércia do poder público, de violência doméstica, de solidão e de fome.

* Priscila Costa Campelo Alves é advogada e consultora jurídica. Especialista em Direito Público e Direito do Consumidor. Mestra em Governança e Direitos Humanos pela Universidade Autônoma de Madrid Doutoranda em Estudos Migratórios e Relações de Gênero

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