A divisão proporcional de recursos financeiros e tempo de propaganda eleitoral gratuita entre candidaturas de pessoas negras e brancas vale para as eleições de 2022, mas há mudanças já para as eleições deste ano.

Em 25 de agosto de 2020 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estabeleceu novas regras para distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). A partir das eleições de 2022, os recursos financeiros e o tempo de propaganda eleitoral gratuita de rádio e TV destinados aos partidos deverão ser divididos proporcionalmente entre candidaturas de pessoas negras e pessoas brancas.

Já para as eleições de 2020, vigora uma regra de transição que estabelece que os partidos devem manter, no mínimo, o repasse percentual equivalente à quantidade de candidaturas negras registradas em 2016.

A compreensão ampla do Tribunal e do presidente Ministro Luís Roberto Barroso é de que a Justiça Eleitoral está assumindo publicamente o compromisso antirracista de enfrentamento às injustiças históricas e ao racismo estrutural.

A nova regra foi uma resposta da corte à consulta da Deputada Federal pelo PT do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, sobre viabilidade de reserva específica de vagas e recursos de campanha para candidaturas de pessoas negras.

Um avanço, de certo, que vem acompanhado por diversos desafios e alertas.

Como funcionava antes da nova regra

Os critérios de divisão dos recursos do FEFC são definidos pelas instâncias decisórias internas dos partidos políticos, nas reuniões de suas executivas nacionais. As diretrizes gerais estão estabelecidas na Resolução TSE nº 23.605/2019, e funcionavam como um denominador comum.

Os partidos devem obedecer às determinações básicas, dentre elas, destinação mínima de 30% dos recursos para as candidaturas de mulheres da sua legenda ou das coligações.

A forma como esses 30% chegariam às candidatura femininas, ficava a critério das executivas nacionais.

Nesse modelo, não havia garantia de que os recursos chegariam para todas as mulheres candidatas. Não haveria problema formal, por exemplo, caso uma única candidata branca recebesse a maior parte dos recursos para sua candidatura, deixando as outras sem nada.

O antídoto a esse tipo de distorção da regra estava investido na credibilidade das instâncias deliberativas dos partidos, entidades centrais da democracia, que em tese não permitiriam moral e eticamente tamanho desvio de finalidade.

Os dados, todavia, comprovam que o antídoto não foi eficiente.

De acordo com dados levantados pela Fundação Getúlio Vargas – Direito, e amplamente divulgados pela Plataforma Antirracista nas Eleições (PANE), candidaturas de homens brancos, que representavam menos que a metade das candidaturas (43,1%), receberam mais que a metade dos recursos para suas campanhas (58,5%). O que sobrou para eles, faltou para viabilizar candidaturas de pessoas negras. Mulheres negras eram 12,9% das candidatas e receberam 6,7% dos recursos, homens negros eram 26% dos candidatos e receberam 16,6% dos recursos. Apenas as mulheres brancas receberam recursos proporcionais à porcentagem de suas participações (18,1% de mulheres brancas candidatas receberam 18,1% dos recursos).

Como resultado, uma composição do Congresso Federal que se distancia muito dos princípios da representatividade política. Para se ter uma ideia, nas eleições de 2018, em que foi registrado um recorde de mulheres eleitas no poder legislativo federal e, pela primeira vez na história do país, a representatividade feminina chegou a apenas 15% do total. São ao todo 76 deputadas em exercício, apenas 11 negras. Nenhuma mulher negra foi eleita ao Senado desde 2014.

Em 2020, das 1.626 vagas para deputadas e deputados distritais, estaduais, federais e senadores e senadoras, apenas 4% estão preenchidas por pessoas negras. 56% da população brasileira é negra. 52% da população é feminina.

A política institucional do país não é composta por pessoas que representam a maior parte da população, a democracia representativa está, portanto, em cheque, assim como o compromisso dos partidos políticos com ela.

Avanços e desafios promovidos pela nova resolução

Por óbvio, a nova resolução garante minimamente que os recursos serão melhor divididos e chegarão, obrigatoriamente à candidaturas de pessoas negras. Esse é um avanço de grande importância, visto que antes dele, sem impedimento regimental algum, pessoas negras poderiam não ter recurso algum para viabilizar suas campanhas.

Nenhum denominador comum, até então, preocupava-se com a questão racial como critério para distribuição dos recursos, mas também nada impedia que os partidos fizessem esses acordos em suas organizações internas.

norma da proporcionalidade dialoga mais com políticas de igualdade do que com políticas de equidade. Não se pode pressupor, todavia, que a realidade dentro dos partidos seja diferente da realidade social. Presumir a garantia de direitos iguais para pessoas que não têm condições de competir com igualdade, pode acentuar ainda mais as desigualdades raciais na política.

Em uma sociedade que tem o racismo como estrutura, pessoas negras têm muitos mais obstáculos a superar para entrar e permanecer na militância política partidária do que pessoas negras. O funil da militância partidária para uma candidatura é ainda mais severo nos aspectos de gênero e raça.

Há um aspecto que necessita de especial atenção para que a conquista da proporcionalidade não se volte contra as próprias candidaturas negras. Para acessar mais recursos em regime de proporcionalidade, é preciso que mais pessoas negras se candidatem. Isso implica em ampliar ainda mais suas participações nos partidos, ampliar o número de pessoas negras filiadas, dar ainda mais trabalho e desafios para uma população já tão sobrecarregada e que, na maioria das vezes, não tem as mesmas condições para se dedicar à vida partidária como as pessoas brancas, por razões várias e questões básicas, como garantir a própria sobrevivência e sustento.

A riqueza no Brasil tem cor, a miséria também. As pessoas em cargos gerenciais no Brasil têm cor, as pessoas em trabalhos precarizados também. A população com maior escolaridade tem cor, as analfabetas também. De acordo com o informativo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgado em novembro de 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), pessoas negras são 75% entre as mais pobres; pessoas brancas, 70% entre as mais ricos. Há o triplo de pessoas negras entre os 10% com menores rendimentos per capita no Brasil do que entre o grupo dos 10% com maiores rendas. Enquanto as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca.

Sob essas condições, o gênero e a cor que têm maiores condições de se dedicar à política institucional e à vida partidária é a do homem cis e branco.

Esses são aspectos que não podem ser desconsiderados das instâncias organizativas e deliberativas dos partidos políticos.

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Se desconsideradas, o critério da proporcionalidade seguirá reforçando aspectos da desigualdade e do racismo estrutural. Fosse a distribuição garantida por sistema de cotas ou por reserva, facilitaria, em partes, o manejo desse problema.

Não sendo, especialmente os partidos com agenda progressista e anti-sistêmica, precisam ser exemplos.

viabilidade de candidaturas de pessoas negras e de mulheres não pode ser tratada apenas em anos eleitorais. É preciso elaborar estratégias perenes e criar condições materiais para que essa população tenha acesso à vida política partidária, para que então, em anos eleitorais, possam estar melhor preparadas e estruturadas para apresentar candidaturas mais competitivas e bem-sucedidas também nas urnas.

Sem isso, fragiliza-se o feito celebrado da decisão do TSE, sob risco de retrocessos.

É possível antecipar e evitar processo semelhante aos ataques que temos observado à obrigatoriedade do preenchimento mínimo de 30% das candidaturas por gênero.

Sem estratégias específicas para viabilizar materialmente o engajamento de mulheres na política, que envolve a participação na lida militante partidária, com reuniões noturnas, longas, cansativas, com deslocamentos pelas cidades e estados, com atividades de final de semana, com gastos físicos, emocionais, intelectuais, financeiros, dentre outros, mulheres encontram muito mais obstáculos para perseverar como candidatas.

Há quem diga que esses mesmos custos são também sentidos pelos homens. Verdade. Mas sobre seus corpos não estão contabilizados o dobro de horas semanais dedicadas ao trabalho doméstico não remunerado e cuidado com pessoas, carga mental, pressão social e familiar, menores salários e, por derradeiro, maior insegurança para circular e se deslocar pelos espaços públicos, especialmente nos períodos noturnos.

resultado material é que sem condições, mulheres se disponibilizam menos às corridas eleitorais. A cota de 30% é então questionada por um suposto, e inverossímil, desinteresse. Finalmente, são responsabilizadas pelas consequências das estruturas que as oprimem e excluem.

O problema não é a cota, mas desconsiderar o contexto material da vida das mulheres que as apartam da política institucional.

Posicionamento dos Partidos Políticos

É preciso que os partidos políticos se antecipem e previnam que a recente conquista do TSE por uma reparação de desigualdades raciais nas eleições passe por essa mesma dificuldade e que seja questionada sobre sua importância pela ausência de efetividade .

Os partidos políticos têm, mais uma vez, a chance de fazer a diferença através da divisão mais justa de recursos, com equidade de gênero e raça, tornando candidaturas de mulheres e de pessoas negras mais viáveis.

Para esse ano, que é ano eleitoral mas que as novas regras anunciadas pelo TSE ainda não se aplicam, alguns partidos já se anteciparam e anunciaram regras próprias de distribuição do fundo, antes mesmo da decisão do TSE, diga-se. Foi o caso do PSOL, que no dia 08 de agosto de 2020, em reunião do seu diretório nacional, deliberou sobre a destinação de mais recursos a candidaturas à vereança de mulheres (30%); negros e negras (50%), indígenas, quilombolas e LGBT (15%); pessoas com deficiência-PCD (10%), em relação a candidaturas de homens brancos na mesma faixa de prioridade; e do PT, que destinará recursos para o Fundo De Mulheres em uma conta própria, em que as dirigentes possam ter maior autonomia de gestão, e que contará com cerca de 50% dos recursos totais do primeiro turno, destinados para os Estados e Municípios, especificamente para campanhas femininas do partido.

Para o próximo ano, não eleitoral, vamos esperar e cobrar, dos partidos do campo progressista, que adotem medidas perenes de fortalecimento e manutenção de pessoas negras e de mulheres na política partidária, independente dos resultados da urnas.

É uma condição imprescindível para fortalecer a resolução que há pouco celebramos e para que possamos, mais a frente, avançar ainda mais por uma sociedade justa, igualitária, com paridade racial e de gênero.

Nossas elaborações por um mundo mais justo precisam ser acompanhadas por práticas viáveis e condições materiais de transformação das realidades desiguais. A teoria e prática são indissociáveis.

Sobre origem da iniciativa que culminou na decisão 

Importa negritar que a decisão pela distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão de forma proporcional ao total de candidaturas negras que o partido apresentar para a disputa eleitoral, foi tomada a partir de uma consulta formulada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ).

Originalmente, a deputada desejava saber sobre a viabilidade de uma parcela dos incentivos às candidaturas femininas que estão previstos na legislação ser reservada especificamente para candidatas da raça negra; se 50% das vagas e da parcela do FEFC poderiam ser direcionadas para candidatas negras; e se haveria a possibilidade de reservar vagas – uma espécie de cota – para candidaturas negras, destinando 30% do FEFC e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV para atender a essa finalidade.

Benedita da Silva, mulher negra, feminista, de origem popular, há 37 anos na política partidária, filiada ao mesmo partido, Partido dos Trabalhadores. Foi eleita pela primeira em 1983, vereadora da cidade do Rio de Janeiro. Desde então já foi eleita deputada federal, senadora e vice-governadora do Estado, já foi secretária de Assistência social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro e Ministra da Secretaria Especial de Trabalho e Assistência Social do Brasil.

Há 37 anos se dedica à política representativa mas a falta de representatividade ainda está longe de ser superada.

A gente nem consegue imaginar o tanto de coisas que ela já viu, sentiu e sofreu nesse período. O que a gente consegue saber, com certeza, é o que ela não viu, ou melhor, viu muito pouco durante quase quatro décadas de trajetória: pessoas negras, como ela, conquistando o espaço que ela conquistou. Mulheres, mulheres negras, especialmente.

Não há autoridade política maior para representar todas essas questões apresentadas, do que a dela. A decisão foi firmada por um colegiado composto exclusivamente por homens brancos do Tribunal Superior Eleitoral, também presidido por um homem branco, mas essa vitória precisa estar atribuída à Benedita da Silva. Mulher negra, feminista, veterana, que estava de mãos dadas com diversos movimentos negros e que deixa mais essa contribuição para a história do país.

Uma mulher negra feminista não deixa passar. Uma mulher negra feminista na política fortalece a construção sociedade justa, em pequenos gestos e em feitos históricos.

No dia 15 de novembro deste ano, o Brasil todo irá às urnas escolher representantes que ocuparão a política legislativa e executiva de suas cidades.

Quando for escolher em quem votar, em quem apoiar, reflita sobre qual caminho sua escolha estará ajudando a trilhar.

Consulte o mosaico 2020 da Campanha-Ação Meu Voto Será Feminista e se inspire.

Em 2020, Vote Feminista.

Publicado na plataforma Meu Voto Será Feminista.

*Bia Paes é mestra em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e co-fundadora da campanha-ação Meu Voto Será Feminista.

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