“Desliguem o pensamento partidário e sejam mente aberta”. “Sem ideologia. Eficiência e técnica são nossos lemas”. “Eu não discuto partidos, só discuto ideias, voto em pessoas”. “Não sou político, sou um administrador, sou empresário, sou gestor”.  “Nem de direita, nem de esquerda, Brasil acima de tudo”.

Você já ouviu as frases acima? Leu em alguma rede social? Ou, ainda, ouviu em um bate papo com aquele amigo mais progressista? Nas últimas eleições (2016 e 2018), muitas das ideais transmitidas nessas frases circularam entre a população e foram constantemente afirmadas nos discursos de políticos hoje eleitos – como João Dória (PSDB-SP), Carlos Moisés (PSL-SC) e Bolsonaro (sem partido). Na atual eleição (2020), esse fenômeno permanece.

Imagem: Reprodução Folha

No Brasil, é impossível que uma pessoa seja candidata sem estar filiada a um partido. A obrigatoriedade da filiação partidária como critério para elegibilidade está na Constituição Federal, no artigo 14. É impossível também afirmar que um partido não seja político. Os candidatos que dizem em seus discursos não serem políticos – convencendo parte da população de que isso é bom – estão, no fundo, fazendo política. E não é a “nova política”, como gostam de afirmar.

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O Portal Catarinas conversou com especialistas para entender como funciona o sistema político brasileiro e o porquê de o discurso do “desliguem o pensamento partidário e sejam mente aberta” não favorece o avanço dos direitos das mulheres, da população negra, indígena, LGBTQ, dos trabalhadores e dos mais empobrecidos. Esta é a primeira reportagem de uma série que vai abordar as eleições de 2020.

Votação majoritária e proporcional

O sistema eleitoral brasileiro possui dois modelos de votação: o majoritário e o proporcional. Para os cargos do Poder Executivo, isto é, presidente, governadores, senadores e prefeitos, é utilizada a votação majoritária. Para os do Poder Legislativo, deputados federais, estaduais, distritais e vereadores, é utilizada a votação proporcional.

A votação majoritária é mais simples. O voto do eleitor é dado nominalmente, ou seja, é específico para um determinado candidato. Nessa modalidade, a pessoa que conquista a maioria absoluta dos votos (50% + 1) é eleita. O segundo turno se condiciona à situação em que nenhum candidato alcançou mais de 50% do eleitorado, conforme explica o Dr. Hugo Frederico Vieira Neves, assessor jurídico do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina (TRE-SC), em entrevista concedida ao Portal Catarinas.

É importante lembrar que, na votação majoritária, apenas os votos válidos são contabilizados, isto é, os votos nulos e brancos são desconsiderados. Assim, votos nulos e brancos podem interferir indiretamente nas eleições, pois, sendo inválidos, diminuem o número total de votos válidos. Com menos votos válidos, é mais fácil atingir a maioria absoluta (50% + 1) necessária para um candidato se eleger.

Atenção! Votos nulos, além de não anularem as eleições, favorecem indiretamente o candidato mais votado (isso vale para os votos em branco também).

Há um vídeo famoso de bolsonaristas arrependidos que afirmavam que se a eleição fosse hoje, entre Bolsonaro e Haddad (PT), anulariam o voto no 2º turno ao invés de votarem no Bolsonaro. Bem, eles continuariam ajudando a eleger Bolsonaro. Por isso, na sua cidade, pense muito bem antes de anular o voto para prefeito neste ano. Você pode colaborar com a vitória de um fascista.

Já na votação proporcional, o eleitor pode votar em determinado candidato específico (digitando o número completo na urna) ou simplesmente no número do partido (voto de legenda). Nesse modelo, conforme elucida o Dr. Hugo Neves, os eleitos são apurados a partir do quociente eleitoral e do quociente partidário, formando-se a lista aberta.

O cálculo para o quociente eleitoral é feito a partir da divisão do número dos votos válidos, excluídos os brancos e nulos, pela quantidade de vagas nas casas legislativas. A partir do quociente eleitoral, cada legenda pode obter o número do quociente partidário, que significa a quantidade de cadeiras que o partido terá direito pelos próximos quatro anos. Essa conta é feita dividindo a votação obtida pelas coligações pelo quociente eleitoral.

Imagem: Portal Catarinas

O modelo de votação proporcional muitas vezes confunde e é alvo de críticas, já que o candidato mais votado em números absolutos não necessariamente assume o cargo. Neste sistema, é necessário que o partido também atinja um número significativo de votos, como lembra Sabrina Fernandes, doutora em Sociologia, ecossocialista, feminista e criadora do canal Tese Onze.

Confira a entrevista de Sabrina Fernandes para o Portal Catarinas.

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“Não basta ser bem votado, é necessário que o partido ou coligação também atinja um mínimo de votos. Dessa forma, temos o quociente eleitoral e o quociente partidário que serão calculados levando em conta votos válidos e cadeiras disponíveis. Por isso é um pouco confuso, já que os números dependem da eleição concreta em si. Nesse sistema, o mandato não é do candidato eleito individualmente, mas um mandato realmente do partido. Por conta disso, partidos têm o interesse em lançar e promover vários candidatos para que votos de vários segmentos sejam representados”, explica Sabrina Fernandes.

A socióloga ainda ressalta que os partidos de direita buscam agregar pessoas socialmente discriminadas e oprimidas para aparentarem serem inclusivos. No entanto, por trás da aparência de representação e inclusão, estão projetos políticos cujas ideologias são contrárias aos avanços dos direitos das mulheres, das pessoas LGBTQs, negras e indígenas – como o impedimento do direito ao aborto legal, o fim de políticas educacionais para diversidade (com a bandeira da “ideologia de gênero”), o retrocesso em políticas ambientais e de demarcação de territórios indígenas, o congelamento dos investimentos em saúde, entre outros.

Representatividade nas candidaturas e a relação com os partidos

Nas eleições municipais de 2020, segundo levantamento realizado pela Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra), no mínimo 281 candidaturas são de pessoas trans. Dessas, 106 concorrem a cargos eletivos por partidos de direita – a análise dos partidos por espectro político está de acordo com do Congresso em Foco.

No caso da população negra, pesquisa da Gênero e Número mostra que são 270 mil candidatos concorrendo às eleições. Proporcionalmente, há mais candidaturas negras (50%) do que brancas (48%) neste ano. É importante ressaltar que decisão tomada, em agosto deste ano, pelo Supremo Tribunal Eleitoral determina que a partir das eleições de 2022, a verba de campanha e a propaganda eleitoral em rádio e TV serão divididas proporcionalmente entre candidaturas de pessoas negras e brancas.

Mesmo com o fim das coligações na votação proporcional (até as eleições de 2018, partidos de diferentes siglas podiam se coligar e um vereador mais votado puxava outro menos votado, o “efeito tiririca”), votar na pessoa, independente do partido, acaba fortalecendo o projeto político ideológico do partido, como lembra Simone Lolatto, feminista, assistente social e doutora em Ciências Humanas.   

“É preciso avaliar o partido político na hora de escolher um candidato. Digamos que tenha uma candidatura de uma mulher negra, lésbica ou trans num partido político que é violento com essas pessoas, percebe a incoerência? A candidatura daquela pessoa pode alimentar questões ideológicas violentas contra ela mesma e contra toda aquela população. São pessoas que, depois, teremos dificuldade de contar na luta por avanços sociais. Até porque, depois de eleitas, as pessoas têm que votar de acordo com o partido. O parlamentar não vota individualmente, não está totalmente livre de sua bancada”, ressalta Simone Lolatto.

Os partidos de direita, ideologicamente, são favoráveis à redução do papel do Estado, o que afeta negativamente grande parte da população, como atenta Juliana Romão, jornalista, cocriadora e organizadora do projeto Meu Voto Será Feminista.

“Cada partido tem sua visão de mundo. Não faz sentido, por exemplo, votar em uma mulher cujo partido irá votar a favor da Reforma da Previdência, que prejudicará milhares de pessoas. Os partidos de direita não vão lutar por todas as pessoas. Eles querem o Estado mínimo. Olha as consequências dessa política liberal na pandemia. Não podemos fechar os olhos para miséria só porque ela não está sendo vista da minha janela”, analisa Juliana Romão.

Os efeitos negativos da ideia do “voto útil”

Outro pensamento que não beneficia as mulheres candidatas é o: “Não adianta votar em x candidato, você vai perder voto”. O chamado “voto útil” desfavorece a eleição das mulheres candidatas porque, historicamente, elas possuem menor capital político. Dessa forma, o voto por identificação política pode colaborar para que as candidatas cresçam e sejam eleitas, conforme lembra Simone Lolatto.

Sabrina Fernandes completa: “no caso da proporcional, mesmo um voto no seu candidato a vereador que tem menos chances ainda contribui para a eleição de um candidato do mesmo partido – o que ressalta a importância de avaliar bem o partido e a política de seus candidatos, se são compatíveis”.  

Contrariando o pensamento corriqueiro “nem direita, nem de esquerda, mente aberta”, as especialistas entrevistadas foram unânimes: na luta pelo fim do machismo, do racismo, do capitalismo e da homofobia, o partido importa. A “mente aberta” que se pretende neutra, no fim, beneficia a manutenção do Brasil tal como está: campeão em mortalidade materna por Covid-19, com altos índices de feminicídio e morte da população LGBTQ, com retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos, entre tantas outras violências.

A negação e a desinformação sobre a maneira como funciona o sistema político brasileiro não é um fenômeno isolado, vem acompanhado de outras negações daqueles que, eleitos, se esforçam para o aumento das injustiças sociais. Para eles, a terra é plana, as vacinas chinesas são comunistas, a pandemia é só uma gripezinha, direita e esquerda ou são a mesma coisa ou a esquerda é um monstro a ser combatido, a democracia via militarismo é possível.

“É preciso falar não somente de democracia, mas que tipo de democracia: com retirada de direitos previdenciários? Com teto dos gastos? Ou com investimento real no setor público para contemplar a maioria?”, finaliza Sabrina Fernandes.

Confira a entrevista de Sabrina Fernandes para o Portal Catarinas.

Imagem: Portal Catarinas

*Edição de Morgani Guzzo.

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  • Inara Fonseca

    Jornalista, pesquisadora e educadora. Doutora (2019) e mestra (2012) em Estudos de Cultura, pela Universidade Federal de...

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