A cabeleireira Violeta*, 34 anos, não sabe ao certo quando começou a ser abusada pelo avô. Tinha cinco ou seis anos, talvez um pouco menos. Os abusos ocorreram durante infância e início da adolescência, período em que morou junto com os pais e irmãos na casa dos avós, em Tubarão, município de 100 mil habitantes no sul de Santa Catarina.

“Havia um terrorismo, ele era autoritário e eu fazia pelo sentimento de obrigação. Numa época, ele passou a me dar balas, presentes e até dinheiro para me aliciar”, conta a vítima.

Desde que o silêncio foi rompido, aos 13 anos, Violeta passou a ser perseguida pelo patriarca e teve que lidar com o isolamento do convívio familiar. O abusador, já falecido, à época passou a impedir a presença da neta nas festas familiares por não aceitar a presença do namorado.

“Quando a gente vê as notícias entende o porquê da demora na denúncia. A família não acredita na versão da vítima e ainda apoia quem cometeu a violência. Percebi como as pessoas são hipócritas. Todos consideram a violência sexual contra crianças um absurdo, mas quando acontece com a sua família, não tomam atitude”, afirmou a vítima.

Acesse a programação da Campanha 16 dias de Ativismo pelo fim da violência contra as mulheres em Florianópolis.

O caso nunca chegou à Justiça e, como tantos outros, não está contabilizado nas estatísticas do estado que já ocupa a liderança em violência doméstica. Santa Catarina tem o índice mais alto do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, com 225 casos para cada 100 mil habitantes, e é o segundo em violência doméstica quando as vítimas são somente mulheres, com 368,1 registros para cada 100 mil mulheres, atrás apenas do vizinho Rio Grande do Sul com taxa de 398 – enquanto a média nacional é 183,9.

Machismo, misoginia, conservadorismo e autoritarismo são alguns dos fatores que implicam diretamente na violência sistêmica que atinge as mulheres e meninas dentro de suas casas. Não é por acaso que o político defensor de tais bandeiras morais tenha conquistado tantos eleitores no estado, expressando o tratamento que dispensa às suas mulheres também nas urnas.

Santa Catarina, o único estado com nome de mulher, registrou a maior adesão a Bolsonaro (65,82% dos votos válidos no primeiro turno e, no segundo, 75,92%) –  esse que só não estupraria mulheres que não merecem. O estado é o primeiro em tentativa de estupro com 10,8 casos para cada 100 mil habitantes, e o segundo em estupro com uma taxa de 57%, perdendo apenas para Mato Grosso do Sul que registrou em 2017 o número de 66 casos – duas vezes mais que a média nacional que é de 29,4.

Na cidade onde Violeta sofreu abuso durante toda a sua infância, a proporção de Bolsonaro foi ainda maior: 74,63% de votos no primeiro turno e 83,41% no segundo.  

“A urna mostrou porque o estado é liderança em violência contra a mulher”, afirmou Suélen Dadam, coordenadora da Coordenadoria da Mulher, em outubro, durante reunião do Fórum de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Campo, da Floresta, das Águas e Quilombolas.

Em média, nove casos de violência sexual são registrados todos os dias em Santa Catarina, com uma população de aproximadamente três milhões e meio de mulheres. Esses números significam apenas uma pequena parcela da realidade vivida pelas catarinenses, pois pesquisadores responsáveis pelo Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), apontam que a subnotificação de casos de estupro, por exemplo, pode chegar a 90%, “tendo em vista o tabu engendrado pela ideologia patriarcal, que faz com que as vítimas, em sua grande maioria, não reportem a qualquer autoridade o crime sofrido”.

As crianças são as maiores vítimas de estupro no Brasil. Conforme indica o Atlas, 50,9% dos casos registrados em 2016 foram cometidos contra menores de 13 anos e 17% contra adolescentes. O estudo apontou alta taxa de recorrência nos casos de estupro. Em 2016, 42% das vítimas disseram não ser a primeira vez que sofriam esse tipo de violência. Nesses casos, a maioria dos autores era conhecido das vítimas.

“O estupro é uma das violências mais hediondas porque é aí que se exerce o poder. É preciso dizer que esse índice diz respeito ao estupro de mulheres e meninas. As meninas estão sendo violentadas dentro de suas casas. A gente questiona isso, mas o Estado não dá respostas”, afirma Sheila Sabag, integrante do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) e presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulheres em Santa Catarina (CEDIM).

A “sagrada família” e as violências contra meninas e mulheres
No programa de governo, Bolsonaro prometia com letras maiúsculas e exclamações “combater o estupro de mulheres e crianças”. É a única citação à mulheres e violência sexual de seu plano, seguido de um gráfico com o número de estupros no país. O texto mencionava o crime de violência sexual e logo partia para uma abordagem geral do problema da criminalidade, apresentando como solução o aumento do encarceramento, com base no argumento de que os estados com maiores taxas de pessoas privadas de liberdade são os que “mostram mais avanços” – sem ao menos listar quais seriam esses avanços.

Não há explicações ou informações sobre como seria feito esse combate. Mas, em entrevistas, costuma defender a castração química – método hormonal para tentar frear o impulso estuprador, comprovadamente falho.

Já o tema da família, acionado ostensivamente em sua campanha, foi mencionado 17 vezes. Contrariamente à ideia defendida pelo movimento de mulheres de que o “pessoal é político”, e o que acontece dentro das casas deve estar sob proteção do Estado conforme prevê a Lei Maria da Penha, o eleito dizia que a família é sagrada “e o Estado não deve interferir em nossas vidas”.

Nesses dois pontos está uma das maiores contradições: não é possível combater a violência sexual sem que haja atuação do Estado e uma mudança na cultura familiar, já que a casa é um dos principais espaços de violência contra a mulher. Se Bolsonaro quer mesmo combater esse problema, terá de rever suas declarações.

O Atlas da Violência mapeou mais de 13 mil casos registrados como ocorridos dentro da moradia da pessoa, ambiente que prevalece fundamentalmente os casos de estupro cometidos por conhecidos das vítimas. Nessa situação a casa é a cena do crime em 78,6% dos casos.

Só em 2017 foram registrados 193.482 casos de lesão corporal dolosa contra brasileiras dentro de casa. Estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex) é o responsável por mais de 80% dessas ocorrências, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado de 2010.

De acordo com o Mapa da Violência 2015, a agressão a mulheres é cometida, na maior parte dos casos, por pessoas conhecidas da vítima; diferentemente da violência contra os homens que é praticada por pessoas desconhecidas. “Todos esses aspectos permitem caracterizar a maior incidência da violência doméstica e familiar entre as vítimas do sexo feminino”, conclui o estudo.

Teresa Kleba Lisboa, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acredita que a defesa da família como um espaço intocável é vertente da máxima: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

“É nas famílias sagradas que mais acontecem violência, abuso sexual, negligência e incesto. O principal slogan do movimento feminista é ‘o pessoal é político’. É justamente tirar a violência do espaço privado para o público, visibilizar e romper o silêncio. A questão da violência precisa de visibilidade para o autor ser punido”, aponta a pós-doutora em Estudos de Gênero.

Assim como não é possível prevenir a violência sem que o assunto seja discutido em sala de aula, como estabelece a Lei Maria da Penha – algo que políticos conservadores rejeitam ostensivamente. O projeto Escola sem Partido, por exemplo, quer evitar qualquer assunto que supostamente sexualize as crianças, além de qualquer menção à palavra “gênero” nas escolas. O combate à chamada “ideologia de gênero” – um conceito que inclui desde aulas de educação sexual a propostas anti-homofobia – é uma das bandeiras das candidaturas ligadas à Igreja Evangélica e ao conservadorismo e se tornou uma bandeira de Bolsonaro.

“Essa categoria de ideologia de gênero não existe nos estudos feministas, foi forjada e deturpada. Só existe perspectiva de gênero, identidade de gênero e relações de gênero. O sinônimo para eles é perverter as crianças, quando na verdade falar sobre esses temas é justamente para prevenir violências contra elas”, diz a estudiosa.

Bolsonaro e seus apoiadores encontraram no chavão “ideologia de gênero” uma maneira efetiva de acionar fatos políticos contra adversários, como uma das publicações educativas do projeto Escola sem Homofobia, impedida de ser entregue a escolas por ação de grupos religiosos que a taxaram pejorativamente de “kit gay”. O então candidato chegou a ser obrigado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a remover notícias falsas que associavam Fernando Haddad (PT) ao tema.  

O governador eleito de Santa Catarina, Comandante Moisés, do PSL, mesmo partido de Bolsonaro, é um dos que ganhou apoio popular com essa agenda conservadora. Ele já avisou que vai “trabalhar para que o tema ideologia de gênero não faça parte dos planos municipais de educação”. E já não faz. Isso demonstra o conhecimento dele perante o tema. Ele não considera a discussão sobre o que representa o machismo histórico e o conservadorismo que estão por trás o alto índice de violência contra a mulher no estado e que no governo dele não devem mudar.

Ilze Zirbel, doutora em Filosofia, acredita que a violência doméstica e o “pânico com as discussões sobre sexualidade e gênero nas escolas” têm origens comuns.

“A posição de autoridade de homens confere àquilo que dizem um certo valor de verdade. Se esse valor de verdade for questionado, toda a realidade da pessoa conservadora é abalada: seu lugar no mundo e o próprio mundo dela pode virar de pernas para o ar”, explica.

Neofascismo atualiza o machismo
Santa Catarina é o estado com o maior número de pessoas que se declaram brancas (84%) segundo o último Censo de 2010. É também o estado mais conservador do país, onde direita e extrema direita se alternam no poder há séculos e a família tem um peso social significativo. “Há um predomínio patriarcal, do pai ou do marido. Em muitos municípios o poder é materializado em três figuras: o padre, o pai e o patrão”, diz Reinaldo Lohn, professor do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Formada por 295 municípios, Santa Catarina tem aproximadamente 7 milhões de habitantes – cerca de 15% em áreas rurais. Em mais da metade dos municípios a população gira em torno de dez mil habitantes, alguns com população inferior a 1500. “Não temos grandes cidades, por isso os mecanismos de controle social são muito efetivos”, explica Lohn. “Há uma certa moralidade burguesa e cristã que encontra terreno razoável para ter durabilidade ao longo do tempo em função dessa estrutura demográfica e urbana.”

Não é a primeira vez que o estado flerta com o fascismo sob o lema da defesa tradição, família e propriedade. Nos anos 1930, catarinenses – a grande maioria de origem alemã – apoiaram massivamente a Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento político nazista à brasileira criado por Plínio Salgado. “As relações políticas do estado são razoavelmente previsíveis, o fenômeno Bolsonaro criou um nível de imprevisibilidade, mas que no caso de Santa Catarina foi onde o partido integralista de inspiração fascista e extrema direita teve mais força”.

No documentário Anauê! – O Integralismo e o Nazismo na Região de Blumenau, lançado no ano passado, o cineasta Zeca Pires recuperou essa história pouco debatida, a do integralismo no Brasil e o contexto que o levou a ter o maior número de adeptos no Sul do País. No filme é possível ver imagens de bandeiras com a suástica nazista em eventos ocorridos na região.

“Tudo muito triste. Não aprenderam com a história, mas creio que está em parte no DNA e muito na educação e na cultura, falo desse gen preconceito, racista e intolerante”, afirma o diretor do documentário sobre o cenário atual de apoio ao fascismo.

A guerra cultural empreendida pela extrema direita no Brasil e em vários países do mundo, visivelmente Inglaterra e Estados Unidos, não se trata somente de uma onda conservadora, mas do avanço do reacionarismo. “O conservadorismo político não necessariamente é fascista. Ele é inclusive bastante cético, desacredita da natureza humana, acha que as coisas não vão mudar. Esse reacionarismo toca em pontos nevrálgicos como o gênero e renova o anticomunismo via antipetismo. É novo em relação ao conservadorismo porque é insurgente, chega a ser quase uma demanda por ruptura social. Há um ativismo forte de direita que com as tecnologias se mostrou muito mais eficaz para gerar efeitos de ondas”, coloca o professor.

O apego de Bolsonaro à violência, contestada por defensores dos direitos humanos, paradoxalmente é o que ativa o fascínio de seus eleitores, como explica Lohn.

“Havia uma demanda pela ‘democratização da violência’, é como se ele dissesse: ‘você vai ter direito de praticar a sua violência particular’. O alvo acaba sendo as pessoas mais frágeis. No âmbito doméstico, isso tende a ser um horror para as mulheres”.

A liderança em violências
Diagnosticar o problema da violência contra as mulheres para a construção de políticas públicas efetivas demanda a compilação e o mapeamento dos casos. O desencontro de informações e dados coletados nas diversas áreas institucionais resulta não apenas da falta de estatísticas, mas também da desconfiança dos índices apresentados, como é o caso da liderança do estado nos casos de violência doméstica, apontado pelo Anuário.

O estado não cumpre a Lei Estadual 15.806, de 16 de abril de 2012, que obriga o Poder Executivo a registrar e divulgar os índices de violência contra a mulher de acordo com indicação da raça/cor das vítimas de violência. Sequer a idade das vítimas é informada.

“O anuário da segurança pública está sendo um primeiro esforço de sistematização de dados no país, mas cada estado tem um sistema próprio. Se pegarmos, por exemplo, Saúde, Polícia Civil, Militar, terão outros dados. As ocorrências geradas pelo 190 não fecham com as da civil. Estamos tentando minimizar isso. Se a PM gera um BO, a Civil tem que instaurar o inquérito. Mas isso não necessariamente acontece por uma questão corporativa deles”, explica a promotora Hélen Sanches que atua na Promotoria de Justiça da área da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em Florianópolis.

Entre 2008 e 2011 o número dos registros de violência doméstica aumentou 85%, possivelmente pelo efeito da Lei Maria da Penha, aprovada em 2006. Desde 2011 esses registros se mantiveram estáveis com um acréscimo de 10% no período. Os dados podem ser acessados no portal da Secretaria de Segurança Pública do Estado.

Esforço dos movimentos de mulheres e de deputadas estaduais, a lei que institui o Observatório da Violência Contra a Mulher em Santa Catarina, aprovada em 2015, foi vetada pelo governo do Estado por ser considerada inconstitucional. O projeto, de autoria da deputada Ana Paula de Lima (PT), buscava ordenar e analisar dados sobre violência contra mulher, além de integrar os órgãos de atendimento.

“O veto chegou a ser derrubado pelos deputados, mas o governo argumentou que não havia recursos disponíveis para que ela fosse regulamentada. Recentemente, a lei foi arquivada. De acordo com o texto do arquivamento, há outras prioridades para o governo”, lembra Sheila Sabag, integrante do CNDM e presidenta do CEDIM.

A coordenadora das Delegacias de Polícia de Atendimento à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMIs), Patrícia Zimmermann D’Ávila, acredita que a liderança está ligada ao trabalho de conscientização feito pelo Estado e que motiva as vítimas a denunciarem.

Uma das frentes é o programa “Polícia Civil por elas”, que atua na aproximação com as vítimas para dar vazão às notificações. Já a Rede Catarina de proteção à mulher, projeto da Polícia Militar ainda em fase piloto, consiste no patrulhamento para assegurar a segurança das vítimas, especialmente protegidas por medidas protetivas.

“É uma política pública para não mascarar os números. Nossa ideia é intervir na primeira forma de violência que é a ameaça, onde geralmente a mulher não representa ou desiste na audiência, para evitar o feminicídio lá na frente”, argumenta a delegada.

Apesar da liderança em violência doméstica, o estado ocupa a décima posição em feminicídios, ao lado do Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com uma taxa de 1,4 casos para cada 100 mil mulheres. “O feminicídio é o dado inequívoco, Santa Catarina teve 35 casos até o momento. A violência doméstica é um caso complexo, com muitos fatores associados. Mas o acesso à informação aumenta as denúncias, as delegacias funcionando favorecem a notificação”, assinala a promotora.

Mesmo assim, a representante do MP não deixa de atentar para a possibilidade de subnotificações, especialmente no interior, já que os números mais expressivos se concentram na região da capital. “A pessoa que trabalha em um assentamento no Extremo-Oeste tem mais dificuldade de acessar o equipamento e fazer o registro, buscar medidas protetivas. Mas isso não quer dizer que ela não possa estar protegida, que não existem locais para isso. Uma das frentes de enfrentamento à violência contra a mulher é a violência no campo, essa sim não aparece. Só aparece quando se consuma o feminicídio”.

Sanches trata com pouca importância as estatísticas. “Eu não vejo que seja só o fator cultural, que o estado tenha uma tradição conservadora, uma tradição talvez de imigração de culturas conservadoras. Eu não me preocupo tanto com a estatística, eu me preocupo mais com a realidade, o dado pra mim não diz muita coisa”, afirma a promotora.

Claudia Regina Nichnig, professora de História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), discorda que a liderança de SC possa ser explicada pelo acesso das mulheres aos serviços, já que não há base para comparação com outros estados. “O fato de ser um estado conservador e grande número de vítimas nas áreas rurais é reflexo da sociedade que a gente vive e tipo de população. Temos que lidar com o fato de ser um dos estados mais violentos e enfrentá-lo com medidas urgentes em nível de educação e políticas públicas”, argumentou.

Ao contrário do que as vozes institucionais argumentam, Teresa Kleba acredita que a tradição cultural do estado, voltada a comunidades interioranas de colonização italianas, alemãs e polonesas, pode interferir na identificação da violência de gênero. “Com certeza essas pessoas nunca ouviram falar nisso que a gente acha super importante esclarecer, conscientizar sobre igualdade entre homens e mulheres”.

Para a estudiosa de gênero, a violência institucional nos espaços que deveriam acolher as vítimas pode ocultar uma cifra ainda maior. “As vítimas não têm tanta facilidade assim para fazer a denúncia. A maioria desconhece as delegacias e direitos, tem medo de represálias, é exposta a humilhações e maus tratos, porque grande número de funcionários ainda considera esses casos como não-prioritários. Desqualificam as vítimas, desacreditam os relatos, não efetuam provas chaves, priorizam provas físicas e outorgam pouca credibilidade para os depoimentos delas”. observa.

As garras do machismo no sistema de justiça
A violência doméstica é a principal queixa nas Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso do estado. Foi uma dessas delegacias, na cidade de São José, que Laura* procurou depois de ter sido agredida pelo marido. Quando prestou a queixa, foi surpreendida pelo escrivão: “você realmente deseja prender o pai dos seus filhos?’, ele perguntou. Laura desistiu em prosseguir.

“Eles usam a lei para desestimular a mulher à denúncia. Essa mulher ficou por uma hora e meia na delegacia pensando se ia denunciar”, contou a advogada da vítima, Iris Gonçalves Martins, do coletivo 8M. 

A advogada diz que na justiça catarinense é comum, por exemplo, o arquivamento de processos por agressão quando testemunhas afirmam que o agressor é um bom pai. “Sempre que vem aquela história de que ele é um bom pai, o processo é extinto. Isso se sobrepõe à violência, não interessa se espancou a mãe. Um bom pai espanca a mãe da criança?”, questiona a advogada.

Em Pinhalzinho, interior do estado, uma mulher conseguiu fugir de casa enquanto era agredida pelo marido e acionou a polícia militar. Ainda com marcas no pescoço, ela passou pelo exame de corpo de delito que comprovou a agressão, mas teve o pedido de medida protetiva negado. O juiz entendeu que “eventuais brigas de casais não demandam a atuação do Poder Judiciário de forma tão severa assim”. “Não é qualquer briga do casal que se permite a utilização das extremas vias do Direito Penal. (…) As medidas cautelares de urgência devem ser aplicadas em último caso e quando efetivamente haja provas da violência sofrida”, diz trecho da decisão. O processo foi arquivado.

A decisão do juiz levou ao arquivamento do processo-crime. “Essa decisão confirma a nossa percepção de como o machismo está estruturado em todos os sistemas de justiça”, pontua a advogada.  

Já os  motivos para a descontinuidade dos trâmites legais por parte da mulher agredida estão relacionados tanto à reconciliação com o agressor quanto à necessidade de provar que os atos violentos ocorreram, o que indica a fragilidade do entendimento de que a palavra da vítima basta.

Segundo Hélen Sanches, ainda existe a necessidade de comprovação de que a vítima estava em uma relação violenta. “Muitas não registram ocorrência porque não tem como provar, mas a versão delas é importante e pode corroborar essa versão com outros elementos sobre a relação. A Lei Maria da Penha veio dar essa proteção exatamente porque a violência ocorre sem a presença de testemunhas, mas precisamos de elementos que comprovem que a relação era agressiva. O filho pode ser testemunha, os vizinhos também”.  

Esta cifra oculta de mulheres que não quiseram prosseguir com o processo, somadas aquelas que nem mesmo fizeram uma ocorrência por acharem que suas versões não seriam suficientes para a comprovação da violência, também está relacionada com o baixo percentual estimado de denúncias.

Ausência de políticas públicas
Uma das principais reivindicações do movimento de mulheres no estado é a criação de uma secretaria estadual específica, dotada de orçamento próprio e com o plano estadual de políticas para as mulheres, pautado na última Conferência Estadual de Políticas para Mulheres.

A Coordenadoria Estadual da Mulher integra a Secretaria de Assistência Social, mas não tem nem orçamento. “Enquanto não houver uma Secretaria de Estado da Mulher, não teremos execução de políticas para mulheres em Santa Catarina. Tanto a coordenação quanto a secretaria de assistência social não executam políticas para as mulheres, porque não têm recursos para isso”, sustenta Sheila Sabag, do CEDIM.

A assinatura do Pacto Maria da Penha de enfrentamento à violência contra as mulheres, no lançamento da Campanha 16 dias de ativismo, em 20 de novembro, é um aceno do governo para a possibilidade de elaboração de política estadual voltada à coibir a violência e desigualdade de gênero. O acordo interinstitucional é direcionado ao enfrentamento a todas as violências contra as mulheres a partir de uma visão integral do fenômeno que é a violência, nas dimensões da prevenção, assistência, combate e garantia de direitos.

“É um marco histórico para as mulheres de SC. Nesta assinatura há um indicativo de que o Estado está começando a enxergá-las. É inadmissível que o Estado não tenha políticas públicas voltadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres. Precisamos que as mulheres sejam atendidas em sua integralidade e não em pequenas ações. Precisamos que a Lei Maria da Penha seja aplicada corretamente por todos os organismos responsáveis em cumpri-la”, defendeu a presidenta do CEDIM.

Sabag argumenta que o enfrentamento à violência deve envolver também ações que promovam autonomia econômica para que as mulheres possam romper o ciclo de violência. Segundo a conselheira, a reincidência dos casos de violência é alta, porque as vítimas não contam com a proteção do Estado quando denunciam o agressor. Em toda Santa Catarina há apenas nove casas-abrigos, geridas pelos municípios e duas casas de passagens que atendem também mulheres que vivem em situação de rua.

Kleba assinala que há um descaso histórico das autoridades catarinenses com as pautas das mulheres. “O Estado não prioriza políticas públicas, a dotação orçamentária para combater a violência de gênero é sempre irrisória, porque nossos gestores acham que tem questões mais importantes, provavelmente eles também naturalizam as violências e acham que se as mulheres foram estupradas é porque provocaram”.

Mais de uma década depois da Lei Maria da Penha, Santa Catarina ainda é o único estado da região Sul que não implantou atendimento policial especializado para mulheres por meio das delegacias exclusivas, como prevê a legislação da violência doméstica. A delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila informou que em Joinville e Florianópolis as mulheres encontram atendimento 24 horas, mas não soube dizer ao certo quantas DPCAMIs das 31 unidades funcionam dessa forma.

A criação de Delegacias Especializadas da Mulher com atendimento exclusivo foi uma das 28 recomendações feitas ao Estado pela Comissão Parlamentar de Inquérito, aberta pelo Senado Federal em 2011 e concluída em 2013. Instituída com “a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público”, a comissão mostrou preocupação com a contínua ascensão dos números de violência doméstica no estado. Foram recomendadas ainda a criação de secretaria da mulher e melhorias no sistema de coleta de dados. De lá para cá, pouco mudou.

Política pública federal: Mulher, viver sem violência
A política pública mais consistente voltada à violência doméstica em Santa Catarina foi uma iniciativa federal, o programa “Mulher, viver sem violência”, que doou dois ônibus em 2013 para atender vítimas. O projeto chegou a ficar abandonado por falta de recursos e só foi reativado no ano passado depois de pressão popular.

Cerca de 90% dos municípios já foram atendidos pelo programa, cujo cronograma é feito pela coordenadoria e Fórum de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Campo, da Floresta, das Águas e Quilombolas. Em algumas cidades o atendimento momentâneo é a única oportunidade das mulheres romperem o silêncio. “No município de Angelina (com cinco mil habitantes), que teve solicitada a sua inclusão no calendário deste ano, o atendimento ocorreu durante dois dias e recebemos uma denúncia de estupro”, relata a coordenadora da Coordenadoria da Mulher, Suelen Dadam.

Em Lages, na serra catarinense, onde os índices de violência são altos, o atendimento itinerante foi incluído no calendário como programa fixo e adotado como política pública do município. Porém, nem todos são simpáticos à ação. “Há ainda muitos municípios que têm certa resistência em receber o projeto, porque fazem outros trabalhos e acham que quando a unidade chega o impacto dela é negativo, principalmente em lugares com poucos habitantes, onde todo mundo fica falando e as mulheres têm medo de buscar ajuda”, expõe a executiva.

“Há municípios, como São Joaquim, em que as mulheres precisam do básico como saneamento e telefone. Nessa cidade perguntamos ao delegado como a vítima vai pedir socorro se não tem cobertura de telefonia celular e o telefone público fica a quarteirões de distância. Quando a gente vê que essas coisas acontecem neste estado enorme, com um dos melhores IDHs do Brasil, a gente percebe a fragilidade das políticas sociais”, colocou a conselheira do CEDIM.

A cultura conservadora e patriarcal aliada à ausência de políticas públicas e pouca eficácia dos equipamentos de prevenção e coibição da violência, formam o panorama na atualidade de Santa Catarina como o estado mais machista e violento do país para as mulheres.

*Os nomes são fictícios para proteger a identidade das entrevistadas.

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