Começo por aquilo que não temos. A queda da única presidenta eleita na história do Brasil.
A manutenção dos números da violência contra nós mulheres, que aumentam absurdamente quando somos pretas, pobres, moradoras das periferias do mundo.
A espetacularização do estupro, da violação cotidiana dos nossos corpos, exibida com orgulho nas redes sociais.
A saída do armário de fascistas, misóginos, homofóbicos, conservadores, fundamentalistas diversos, que querem exorcizar nossas Liliths, nossas resistências.
O desmantelamento de nossos direitos, a recolonização, a volta do banquete dos ratos, do qual somos um dos pratos principais.
A masculinização exacerbada do poder, sempre pronto a nos reduzir.
A reiteração cotidiana de papéis tradicionais.
Os filhos machos, indecentes, que tantas ainda (des)educam.
Mas… vamos combinar que nós sabemos causar, e causamos!
À frente das manifestações, exigindo direitos.
Nas salas de aula, com vontade, irreverência e questionamento.
A diferença já deu o tom. O das vozes, o das cores, da rua que passa por sob os pés.
Que o mundo rode, que o contra pode, que o nada exista, que os olhos chorem e o corpo flutue…
Nosso aquilombamento é de cada dia.
Somos mais, somos muitas. Juntas, somos fortes! Existimos e não queremos pouco.
De tanto estudar os anos 1970 no Brasil e a história das mulheres em perspectiva de gênero, tornou-se quase impossível não fazer algumas relações com os dias que vivemos hoje.
Quando o então chamado feminismo de segunda onda rompeu as fronteiras do Norte e chegou ao sul da América, ele ainda era “branco”, vinha das elites, de mulheres que eram desrespeitadas por seus subalternos pelo fato de o serem. Mulheres? Subalternas? E posso citar o caso, analisado numa pesquisa que fiz, da mais conhecida cineasta argentina, María Luisa Bemberg, nascida em uma das famílias mais ricas do país, maltratada por seu motorista pelo fato de ser mulher. Do pai, passou para a tutela do marido; depois da separação, tinha que responder aos filhos, até que, com o feminismo na Unión Feminista Argentina (UFA), que ajudou a criar em 1970, passou a fazer cinema, conseguiu certa autonomia e bastante reconhecimento. Como ela, muitas economicamente privilegiadas foram impedidas de estudar, de desafiar os padrões da sua própria classe dominante.
Com isso, algumas feministas, como a estadunidense Robin Morgan, passaram a entender que a “irmandade” era global (Sisterhood is Global, 1981) e a opressão, compartilhada.
Uma irmandade ainda branca, a voz da rica falando a preta, dizendo a pobre, trabalhadora. Depois, a voz da preta, mostrando o punho, pichando a rica, usufruidora.
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O problema geral das mulheres não escapa ao específico de cada uma, e como as feministas negras não tardariam a reivindicar, logo uma grande fratura da identidade “mulher” faria delinear um outro cenário.
Eu já fui branca, cresci morena, batalhadora. Hoje sou preta, ou sou cafuza? Pro grande olho, consumidora. “Eu sou mulher, mas isso não é tudo o que eu sou”. Por outro lado, cada parte do que sou me atravessa, intersecta com as outras, me atinge. Mulher-preta-pobre-periférica-lésbica-trans-mana-nãobinária-mina-trabalhadora-puta-macumbeira-impura-professora… ou nada disso! Quais você é? substitui o quem você é.
Ser mulher já foi ser tanta coisa… Em tempos de ditadura, voltando aos 70, a palavra de ordem passou a ser “Nós Mulheres” e ela esteve nos gritos de muitas manifestações, também na imprensa alternativa editada por mulheres em diferentes pontos do mundo. Na Itália, um jornal levava o nome do grupo editor – Noi Donne; no exílio francês, as latino-americanas passaram a publicar o periódico Nosotras; no Chile, encontramos um exemplo homônimo, com o Nos/Otras; no Brasil, feministas de esquerda lançaram o Nós Mulheres, marcando um lugar de resistência no contexto repressivo.
Hoje, quarenta anos depois e já na ditadura civil, nós, mulheres, voltamos a significar.
Somos tantas, que não podemos ser uma.
A genitália já não define. O “lar” já não aprisiona, nem é o que almejamos. O corpo é a nossa casa, o templo em que meditamos.
A mina tá na rua, tá na vida, cola onde quer. Não aceita violência, não paga, não faz pagar, recebe e dá… gentileza.
“Mas mãe, por que eles acham que é assim? Essa coisa de mulher ser diferente?” – pergunta, indignada, a pequena Ana. “Eles acham, minha filha, só que não é. E você vai mostrar”. Fui logo apresentando a deusa Elza, uma entre tantas que tomou porrada, mas resolveu parar e seguiu cantando.
Cadê meu celular, eu vou ligar pro 180. Vou entregar seu nome e explicar seu endereço. Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço. E jogo água fervendo se você se aventurar. Eu solto o cachorro e apontando pra você, eu grito pega (cs cs cs). Eu quero ver, você pular, você correr na frente dos vizinhos. Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim! (Maria da Vila Matilde)
Então, quando a gente olha as ruas, os coletivos, e vê jovens muito jovens e algumas velhas aguerridas ativistas, no meio de Elzas, Marias, Terezas e Fridas, que se beijam, sem temer, e que se unem na força de um grande guarda-chuva triturador e engolidor das identidades fixas, que vomita o que querem que se diga…
Sim, nós temos nossos feminismos, nos temos e temos muito a comemorar!
Que venha 2017, com todos os seus nós e seus prazeres.
Imagem retirada daqui.
* Ana é historiadora, roteirista, videomaker, jornalista, coordenadora de programação do Fazendo Gênero/Mundos de Mulheres, preta e feminista, entre outras possibilidades.