Frio é só mais um desafio para moradoras/es de rua. Com o aumento no número de pessoas morando em situação de rua, especialmente entre mulheres, crescem também as denúncias de abuso sexual e estupros. Mais vulneráveis aos ataques, muitas mulheres em situação de rua andam sujas para evitar criminosos, mas nem sempre a estratégia funciona. Histórias repletas de adversidades e resistência são a rotina de quem não tem um lugar seguro para viver.

O aniversário de um ano do grupo EscutAção, que nasceu da Caminhada dos Privilégios, uma atividade pedagógica do Projeto de Educação Comunitária Integrar, foi marcado pela ação que define sua existência: escutar os relatos de mulheres que sofrem violências, em especial daquelas que vivem nas ruas. O encontro ocorreu na última quinta-feira (18), no auditório do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), em Florianópolis.

Nada se compara a ver e ouvir vítimas reais. Por serem marginalizadas, ainda contam com descaso das autoridades em muitos casos de denúncia de estupro. Como se já não fosse humilhante e constrangedor para a vítima fazer a denúncia, sofrer com a lentidão da Justiça e falta de recursos governamentais para atendimento (muitas têm que ser enviadas para outros estados ou ficar em lugar seguro para que ex-companheiros não as matem), por serem pessoas em situação de rua, procuram nos vícios um alívio, uma fuga, um pouco de alegria. O que resulta em maior precariedade na saúde e na segurança delas, além de aumentar a criminalização sobre essas pessoas.

Mensalmente, as integrantes do grupo EscutAção se reúnem em vários espaços para desabafar e aprender. A professora e militante Luciana de Freitas fala que, “nenhuma dor é maior que a outra. Não estamos aqui para fazer o papel das políticas públicas. Não vamos solucionar o problema das mulheres, jamais. Nessas trocas de experiências, as dores ficam mais latentes. É um espaço de aprendizado”.

Educadora popular e ativista da população negra, Luciana de Freitas é uma das mobilizadoras do grupo/Foto: Ana Carolina Madeira

A psicóloga e psicanalista Adriane Shein acrescenta que a iniciativa do grupo é, “uma construção inédita”. Ela explica que a palavra trauma remete à ferida e que é uma significação posterior ao fato. Como exemplo cita a reação de mães a uma queda do filho. Se a mãe fez cara de assustada, a criança se desespera porque entende que a queda (o fato) pode ter sido grave.

“O trauma é uma ferida que está aberta, mas pode ser cicatrizada. Só não pode ser escondida. O segredo é que adoece as pessoas. Falar sobre estupro ainda é tabu. As pessoas falam sobre acidentes que sofreram, doenças, mas não citam estupro nas filas de banco. Na Assistência Social, o número de relatos de trauma referente a abuso sexual é muito maior que nos consultórios psicológicos”, afirma a psicanalista Adriane.

Os livros “Necropolítica”, de Achille Mbembe, e “A Violência no Coração da Cidade: um Estudo Psicanalítico”, de Paulo Cesar Endo, foram citados pela psicanalista Mariana Lange porque ambos falam dos “mortos-vivos”. Não como os lendários zumbis dos contos de terror, essas pessoas são expostas à morte sem que alguém as mate. Ela questiona a patologização das vivências sociais. “São condições de vida muito dolorosas, distantes dos direitos essenciais”. Só diagnosticar um tipo de depressão e medicar quando falta tudo, não é suficiente. “Muitas vezes, é mais uma vítima de estupro e das políticas de morte”, declara Mariana.

Relatos

Uma das representantes do Movimento Nacional da População de Rua, Aline Salles, ficou tocada ao ouvir o termo “morto-vivo” e se disse honrada por estar no evento. Natural do Rio de Janeiro, conta que seu pai era viciado em jogo do bicho e perdeu até ponto de táxi. Tentado a entregar sua filha para o crime, não aceitou a proposta e decidiu fugir com a família para Curitiba. Lá, pagavam um aluguel caro para o casal e as seis filhas. As contas apertaram e os pais fugiram. Aline, então com 13 anos de idade, viu que o aluguel ia vencer.

Aline Salles integra o Movimento Nacional da População de Rua/ Foto: Ana Carolina Madeira

“Foi a minha primeira prostituição. Eu era virgem, foi fácil conseguir pagar o aluguel. Na prostituição, a gente pega dinheiro rápido”, afirma. Atualmente, não se usa o termo prostituição infantil e, sim estupro, porque ao envolver crianças este tipo de relação é considerada não consensual. Ela se casou com um homem que conheceu quando se prostituía, mas ele bebia e logo começaram as brigas. Foi neste período, que fugiu para as ruas e passou a usar drogas.

Ressalta que consegue pagar pelo vício e, “na rua, ando suja para homem não me pegar. Mesmo assim, um cara de moto me viu bêbada numa noite, me levou para uma casa abandonada, me encheu de soco e tentou me estuprar. Fugi, fiz B.O. (boletim de ocorrência). O Samu negou atendimento e até hoje, a polícia não fez nada. Eu é que sou culpada? Eles (estupradores) se acham no direito!”.

Aline diz que perdeu quatro filhas para o Conselho Tutelar e que, “eles (médicos de algum hospital) fizeram laqueadura escondida em mim porque achavam que o Estado gastou muito comigo”.

A moradora de rua luta pelas mulheres na mesma situação, para que não se envolvam com drogas, orienta locais onde elas podem encontrar absorvente e produtos de higiene íntima, como no Instituto Arco-Íris, uma organização voltada, entre outras ações, a apoiar essa comunidade.

O Estado as ignora

Na última sexta-feira (19), o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, recebeu jornalistas internacionais e mandou a pérola: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”. Bolsonaro respondia a um questionamento do El País sobre o aumento da pobreza e da desnutrição no país, tema que preocupa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conforme disse em entrevista ao mesmo jornal nesta semana.

“Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo”, completou o mandatário. Bolsonaro disse ainda que falar de fome é um “discurso populista”.

Não são apenas números pesquisados por várias fontes, oficiais inclusive. São dores de uma sociedade cruel, cujo mandatário ignora, corta verbas e acrescenta que é mentira. Justo a região metropolitana com o maior Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 2000 a 2010, Florianópolis, também registrou aumento na vulnerabilidade social.

Números: como pagar aluguel quando se recebe um salário mínimo?

Segundo o IBGE, o percentual da população com rendimento nominal mensal per capita de até meio salário mínimo, em 2010, é de 24,6 %. De acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada mensalmente pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), de maio e junho de 2019, o preço médio da cesta de alimentos em Florianópolis aumentou 1,44%, ficando em R$ 494,96. Foi o quarto maior preço registrado entre as 17 pesquisadas pelo Dieese.

O trabalhador florianopolitano cuja remuneração equivale ao salário mínimo necessitou cumprir jornada de trabalho de 109 horas e 7 minutos, em junho de 2019, para comprar a cesta. “Com base na cesta mais cara que, em junho, foi a de São Paulo, e levando em consideração a determinação constitucional que estabelece que o salário mínimo deve ser suficiente para suprir as despesas de um trabalhador e da família dele com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência, o Dieese estima mensalmente o valor do salário mínimo necessário. Em junho de 2019, o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$ 4.214, 62, ou 4,22 vezes o mínimo de R$ 998,00”, afirma a nota à imprensa emitida pelo Dieese.

O aluguel de quitinete varia de R$ 696,88 a R$ 1.087,50, em Florianópolis, conforme o site Custo de Vida. O transporte coletivo custa R$ 4,20. Num simples cálculo, é possível entender claramente o motivo do aumento no número de pessoas que residem nas ruas. Sem o desconto do INSS, R$ 998,00 para pagar o menor aluguel de R$ 696,88 e a cesta básica de R$ 494,96, resulta em falta de R$ 193,84. Imagine ainda descontar parte do vale-transporte, que nem todo trabalhador recebe. Para piorar, a “Reforma” Trabalhista aprovada em 2017, permite inclusive que trabalhadores recebam menos que um salário mínimo nacional (R$ 998,00) e a atual “Reforma” da Previdência reduz o Benefício de Prestação Continuada (BPC) concedido pelo INSS para pessoas com deficiência física ou mental de qualquer idade e idosos acima de 65, para míseros R$ 400,00.

Por outro lado, o Orçamento Geral da União executado em 2018 foi de R$ 2,62 Trilhões em Dívida Pública, sem a devida transparência nos dados, nem auditoria integral com participação popular. O Brasil deve mais de R$ 5 Trilhões de endividamento interno e US$ 556 bilhões na dívida externa. Não contente com esse escândalo, desde 2010 houve R$ 512 bilhões de renúncias tributárias (que o Estado não recebe das empresas devedoras. Ver mais aqui. A propósito, do Orçamento Geral da União, foram destinados 3,26% para Assistência Social. Habitação nem entra no gráfico.

Assim, falta alojamento/albergue para mulheres em situação de rua, absorventes não são mais doados no Centro Pop, clínicas de desintoxicação são Organizações Sociais (OS), ligadas a igrejas chamadas também de comunidades terapêuticas (terceirização do serviço público), filas em postos de saúde, falta ou ausência de medicamentos, entre outras mazelas.

De acordo com o documento Floripa Social, da prefeitura de Florianópolis, “em cinco anos, Florianópolis saltou de cerca de 250 pessoas em situação de rua para 500 em meados de 2017. Já na grande Florianópolis como um todo, estima-se a presença de mil pessoas dormindo ao ar livre”.

Um ano de EscutAção

Como fala no próprio evento do Facebook, criado para o encontro de quinta-feira, o projeto Educação Comunitária Integrar tem como prática pedagógica um exercício que, sem que fosse planejado inicialmente, oportunizou a criação do Grupo EscutAção: a Caminhada dos Privilégios.

Em 2018, ao finalizar o exercício, nas escadarias do Rosário, centro de Florianópolis, muitos estudantes, na sua grande maioria mulheres, relataram casos de violências. Por conta destes relatos, foi idealizado um espaço onde as mulheres pudessem falar sobre as violências sem os olhares de desconfiança, onde cada uma encontrasse na outra a força para seguir sem medo.

“A ampliação e continuidade do trabalho que teve início no exercício Caminhada do Privilégios também se deu por compreendermos que o tema da violência contra mulher deve fazer parte das práticas pedagógicas como estratégia para construir relações humanas pautadas na dignidade e respeito”, explicam.

O grupo de mulheres EscutAção continua com suas reuniões mensais, no intuito de auxiliar uma mulher por vez, entendendo que as violências não somem das vidas das vítimas do dia para a noite, mas que elas podem ser suavizadas.

 

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