Para Eliane Brum

O mundo da gente

em chamas

alegria minha gente

alguém pede nas redes antissociais

com um vídeo de pessoas dançando

enquanto me oferecem a fórmula perfeita para

emagrecer

falar inglês

investir

dar aulas

cozinhar

existir

seduzir

em 2, 3, 4, 5 ou 7 dias

tem algo errado aí

morremos aos poucos

 

criar coragem

levantar da cama

seguir confinada

e se os litros de lágrimas presos dentro

aqui e aí

pudessem apagar

os incêndios

os projetos destrutivos

inundar corpos

mentes

caminhos

devolver alguma umidade

à terra feita estéril

aplacar a sede

a aridez dos seres

eu seguiria então chorando

minha modesta contribuição

para salvar alguma coisa

 

finados

cada manhã

mais um menos um

e o mundo da gente

morre antes da gente

tem algo errado aí

então

como se tornar

o povo que restou?

 

o fogo transmuta

mas ter a cor da brasa

o vermelho alaranjado da ferrugem

não é o mesmo que ser uma ilha pegando fogo

meus conterrâneos contemporâneos

tem algo errado aí

animais e vegetais

cinzas

cinzas

cinzas

 

não tem pau pedra caminho

é o fim de um ano sem fim

o fundo de um buraco sem fundo

tem algo errado aí

 

viver mais

é perder mais

a intimidade do luto

em dias semanas meses anos

entre os cinco estágios

não saberia precisar quem sou agora

quem somos

entre somas e divisões incessantes

 

constato

tem algo errado aí

não vai ter depois

disso

não há lugar para a morte

mas precisamos erguer

cemitérios

dentro ou fora de nós

lembrar a catástrofe é operação vital

construir uma cidade

um país

dar lugar forma e contorno

à dor continental

onde se pode aportar

de onde se pode partir

tem algo errado aqui

em bando

abandonamos

a pátria armada

da desordem e regresso

 

para chocar o ovo de uma outra ave

que não verei nascer

que não posso nomear

ela se movimentará

um baile de asas e patas e bico e penas

dança macabra

sobre a terra

sob o céu

o desenho de um código

puro feitiço

inaugurar outro tempo e outro espaço

 

escapo para esse terreno

imaginário

utopia

porque não aguento habitar

esse corpo

tem algo errado aqui

meus órgãos doem

latejam

se contorcem

e procuro esquecer pra lembrar

explicar pra confundir

mergulhar em qualquer torpor

a procura de outro tipo de fagulha

outro tipo de fogueira

essa alegria lúcida

estratégia de navegação

a partir

daqui

 

 

Elisa Tonon

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