já faz três meses que estou aqui
a casa é confortável
pelo vidro entra a lua cheia
a escuridão lilás das madrugadas
o sol, o ar, alguns insetos
o barulho alentador das panelas
contra os gritos hostis
de alguém capaz de vociferar
fascismos da vizinhança de bem

nem todo inseto é inócuo
o ar muitas vezes é frio
e quando chove as paredes
inflam com um bolor cinzento

a chuva é breve e passa

abro a janela para uma amiga
acontece algo que faz lembrar um encontro
e o coração se alegra um pouco
sua criança colhendo rabanetes bonina

a alegria é mais breve que a chuva

somos invadidas de tantas formas
exibe-se o rosto do presidente
está a mais de dois metros
mas ainda assim é infecto

o enjoo me contamina estômago
e mente, órgão menos palpável,
enquanto os números deixam de contar
e suspeito de enxaqueca
porque proibido mencionar outra síndrome
mais aguda, mais grave, ou que explique
o ar tão pesado pra respirar
e todos os mortos que se acumulam
no chão das casas sem conforto

as janelas amanhecem quebradas
e avisto no horizonte precipício
onde está escrito presidente, leio prefeito
confundo a sombra branca do homem que escapa
dissimulado entre as paredes muito limpas
do seu apartamento no nono andar do inferno

à sombra da sombra do homem
uma mulher empalidece ao explicar
que aceita ser mantida como incapaz
de manter por cinco minutos a própria vida
e chora, é claro, sua pequena miséria
incapaz de ouvir o luto lancinante
da mulher que a alimentava e ela mutilou

a sombra branca pisca outra vez
imperceptível na parede clean
o prefeito decretou essenciais
os serviços domésticos, o transporte público
a polícia e logo mais reabrirá as creches
pois quando chegar do trabalho
cansado do encontro com os ministros
após assinar muitos papéis para que passem
as boiadas todas sobre todos os cadáveres
– os cadáveres de umas mais que os de outras
nem todos os cadáveres têm 32 dentes –
quando chegar ademais da mesa posta
além das fraquezas silenciadas e das crianças
adormecidas vai querer ainda o cão contente e as paredes
imaculadas e ordenará que sua mulher tenha as mãos
finas e a mente vazia e dócil para satisfazê-lo
em cada um dos seus perversos caprichos

terá ela aceitado alienar-se de qualquer vida
em troca de alguns capachos que lhe aqueçam os pés
e agora treme com os pés gelados diante do dono
sem conceber que possa ter sido omissa ou atroz
e não cogita pronunciar o nome do cão de família
que lhe propôs doloso o pacto de morte

o lar do capitão tem tudo que ele quer
mas suas janelas dão para o abismo

Ana Araújo

Abrasabarca

ABRASABARCA se dedica à pesquisa, descoberta e (re)invenção poética. Somos um coletivo que se formou em encontros para ler poemas e falar de literatura em torno da mesa, da fogueira, do vinho, dos livros. A brincadeira de ler em conjunto o texto de outras e outros nos trouxe o desafio e o prazer da escrita autoral. Formado por Ariele Louise, Ana Araújo, Elisa Tonon, Ibriela Sevilla, Juliana Ben, Juliana Pereira e Luciana Tiscoski, realizou as publicações Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). Principais performances: Durar ou arder? (Quinta Maldita, 2018), Uma mulher o que é? (Sarau da Tainha, 2019), Como olhas? (FestiPoa Literária, 2019), Revoluta (Bienal Internacional de Curitiba/ Polo SC, 2019).

Últimas