Na coluna “Pílulas de Discernimento”, Joanna Burigo traz pequenas notas informativas e analíticas sobre temas do cotidiano social e político que estão em debate nos fóruns das redes sociais.

Racismo na ABL

Na última edição do #FemininoFeminismo eu e Paula Guimarães falamos sobre bruxas. 

Nesse programete mensal, que acontece no Instagram do Catarinas, a gente discute feminilidade e feminismo, novas-velhas formas de controle patriarcal, e mulheres insubmissas. Em 5 de outubro, falamos justamente sobre quem foram as bruxas, quais não conseguiram queimar, e se suas netas hoje são feministas… ou fetichistas. 

Pois bem. Neste mais recente episódio fiz um comentário sobre uma capa relativamente recente de uma revista relevante, que enquadrou Fernanda Montenegro como A grande bruxona das artes brasileiras. É verdade? Por que não? Viva Fernanda Montenegro, imensa atriz e grande bruxona das artes brasileiras.

Mas usei esse exemplo para mostrar como qualificar mulheres brancas ou não brancas como “bruxas”, publicamente, tem efeitos bastante diferentes: nós vamos parar em capas de revistas que nos reverenciam, as mulheres negras ou indígenas seguem, literalmente, sendo queimadas. Até aí nenhuma novidade, quem assistiu ao programa já me viu fazer essa argumentação.

Pois bem, mais uma vez: e não é que no dia 8 de outubro foi anunciado que Fernanda Montenegro entrou, sem que sua arte seja exatamente a escrita, para a mesma Academia Brasileira de Letras que recentemente negou a entrada da grandiosa escritora brasileira, outro tesouro nacional e imensa bruxona das palavras e artes brasileiras, a generosa, linda e genial Conceição Evaristo?

Menstruação

Certas discussões parecem acometer a internet e envenenar nossa convivência por surgirem e invadirem o espaço de conversa a partir do estrago que o tema causa nos nossos afetos mais individualistas, e não, por exemplo, da problemática objetivamente em questão, fundamentada não somente nos nossos sentimentos, mas em bases e com critérios. 

O lugar de onde a gente fala é sempre uma reflexão importante a se fazer quando a gente fala, e imagino que isso possa ser pensado em relação também ao lugar de fala de onde o algoritmo nos põe. Da minha, por assim dizer, janela individual para a internet (e cada um de nós tem a sua própria janela para a internet), me parece que algumas discussões importantes acabam por virar ar quente, fumaça, um rio de palavredo num mar de opiniões, que levantam toda sorte de emoções, e que muitas vezes embaçam a gente num desvio de pauta importante por tangentes comuns da linguagem, estimulando ranços e dispêndio de tempo e energia. 

Menstruação, por exemplo, é próprio da fisiologia humana, e não um privilégio, ou coisa de mulher. Mas há, sim, privilégios que podem ser observados pela análise de como sujeitos diferentes têm ou não acesso a higiene e saúde sexual e reprodutiva necessárias pela sinalização de serem/sermos sujeitos que menstruam. É misoginia e é também transfobia o que informa a criação de políticas públicas que interrompam o acesso a higiene e saúde sexual e reprodutiva de gente que menstrua.

Falar sobre menstruação é falar sobre a gente, sobre a humanidade. Não é pauta exclusiva de quem menstrua. E nem todo mundo que menstrua é mulher. E nem todas as mulheres menstruam, trans ou cis ou intersexo. E menstruação ainda assim continua sendo uma pauta de mulheres. E pauta de homens trans também; há várias permutações possíveis entre pautas e identidades. O Bolsonaro odeia mulheres, e odeia também muitas outras pessoas por conta de suas, de nossas identidades. 

E nenhuma dessas afirmações cancela a outra, nem o debate até aqui. 

Enfim, discernimento, gente.

Feminilidade

Seria ótimo se fenômenos que constituem as linguagens e ditames da feminilidade enfatizada não fossem mais chamados de “ditaduras”, como, por exemplo, a “ditadura da magreza”, ou a “ditadura da depilação” ou, como mais recentemente li, a “nova ditadura dos cabelos grisalhos”.

Ditadura, como figura de linguagem nesse lugar, é útil só até o ponto em que denota que muitas das normas e expectativas de gênero pela via do feminino são imposições sociais.

A partir daí, sem que se organize a crítica com enquadramento feminista sobre gênero, o debate permanece ou no peso ou nos pelos ou nas unhas ou no rejuvenescimento… ou em qualquer que seja o outro significante de feminilidade enfatizada em questão.

O debate só nunca é sobre a função social da feminilidade enfatizada.

Não é exatamente uma “ditadura” que vem do cabelo ou da unha ou de qualquer outro componente da aparência. A imposição de coisas da aparência é a própria construção do feminino.

***

O patriarcado é cis, hetero e branco, e é daí que, para mulheres cis brancas (eu mesma, inclusive) (e seguindo nas figuras de linguagem), “tocar fogo” no patriarcado tem um elemento inerente de imolação. Haja paciência, sapiência, discernimento e centramento.

8 ou 80?

Com meus jargões e enfoque no discernimento não tenho como objetivo sugerir unidade; ao contrário, a intenção é evitar ou mitigar desacordo e discórdia e, como lembrou minha editora, a já mencionada Paula Guimarães, polarização

(Nem sempre funciona.)

Sobre gênero e estudos de gênero

* O binário de gênero é um conceito, e um com o qual corpos podem ser lidos. O binário, assim como gênero, não é próprio dos ou inerente aos corpos, e existe sempre em negociações com poder e linguagem.

* A área é ampla, e amplamente articulada por mulheres LBTI+ e homens trans, embora até mesmo alguns homens cis hetero façam excelentes contribuições.

* Todo mundo tem experiência de gênero. Isso é próprio do ser humano. Estas experiências diferem, de acordo com muitos critérios, e inclusive em qualidade de vida.

* Assim como todo mundo tem experiência com gênero, há quem esteja comprometido a estudar e trabalhar com a questão de gênero para aquém e além da experiência individual.

* A área é interdisciplinar; ou seja: pode informar e ser informada pela antropologia, biologia, criminologia, direito, endocrinologia, farmacologia, geriatria, história, interseccionalidade, jurisprudência, literatura, moda, nanotecnologia, oratória, psicologia, queer studies, teatro, u v x z, vocês conseguem ter uma ideia.

* É lindo demais ver as múltiplas áreas de estudos incorporando (atenção às escolhas malandras de vocabulário) bons debates sobre gênero nos seus programas!

* Discutir linguagem neutra de gênero não é pauta cosmética, mas urgente; estima-se que entre 1% e 1.7% da população seja intersexo, e se quase não há linguagem, fora do binário, para o que não cabe na definição de sujeito contida na combinação (já em si nem sempre realista) macho/homem e fêmea/mulher… como vão existir políticas públicas?

* Discutir linguagem neutra de gênero não é capricho de intelectual que não vai pra periferia. Até porque na periferia as pessoas também não vivem em conformidade com o binário de gênero.

* Esse tipo de discernimento é raro porque parte significativa da esquerda, tanto quanto a direita, adora tomar performance e entretenimento por educação. Tem muita gente por aí falando sobre gênero, que acaba atrapalhando mais do que ajuda, pois fala a partir de duas coisas: a própria experiência de vida, e a linguagem tipicamente influencer, que não abraça complexidade nem contradições, nem aplica em sua práxis o rigor conceitual e metodológico que essa área de estudos, como todas sob investigação genuinamente científica, efetivamente exige.

* Linguagem neutra de gênero não é um mistério: na língua inglesa, por exemplo, neutralidade de gênero é a norma culta.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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