Em Pílulas de Discernimento, Joanna Burigo, mestra em Gênero Mídia e Cultura (LSE), conselheira editorial do Portal Catarinas e coordenadora Emancipa Mulher, traz pequenas notas informativas e analíticas sobre temas do cotidiano social e político que estão em debate nos fóruns das redes sociais. Leia a última edição.

Desilusão

O trecho “Bem-aventurados os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano”, de um poema de Maria Gabriela Llansol, tem salvado minha sanidade.

Fogo no patriarcadO

O governador de SC PROIBIU POR DECRETO que se utilize linguagem não-binária de gênero em escolas e órgãos institucionais. Vocês aí, supostes feministes e aliades de esquerde, que zombam de palavras como “todes” e “não-binárie”, conseguem entender porque temos que zombar vocês também? Abraços de anti-Gilead. E fogo no patriarcado.

A enxadrista e o estadista

Vamos ser francos: salvo raras exceções, Hollywood tende mesmo a embelezar ícones da cultura, e sujeitos de destaque que viram filmes ou séries, sejam homens ou mulheres, em geral são transformados em personagens das telinhas e telonas por atores e atrizes mais bonitos e bonitas do que jamais foram.

No entanto, a aparência de Beth Harmon, especificamente, é central para a história do livro que baseia a série “O Gambito da Rainha“, sobre sua vida. Por que, então, não incorporar isso ao programa? A aparência de mulheres é sempre uma categoria central na composição de roteiros propriamente ditos, e não é neste texto que vou desdobrar o quão central ela é para a composição de outros scripts… Mas por que apagar justamente a decisão de marcar que a genial e competente enxadrista era feia?

Vejamos um exemplo do que a indústria faz da aparência de um outro sujeito cuja aparência é central para a veracidade de sua representação na contagem da história, ainda que não faça nem cócegas nos registros da História: Winston Churchill, aquele genial e competente estadista, que era, também, um bagulho. Quando o Gary Oldman — que é um gato — o representou, Churchill não recebeu o charme do Oldman; ao contrário, foi o Oldman que incorporou sua feiúra.

É muito patente, é obscenamente explícito o quão vertiginosamente as exigências, expectativas, e valorização dos sujeitos pela aparência variam de acordo com gênero. Não dá pra não notar, e todo mundo nota. Mas não é exatamente fácil desatar esta problemática, e cá estou, articulando expressão para estes nós até que nem tão cegos assim.

Covid-19 e Copa América

Segundo a Gaúcha ZH, em 16/06 eram 52 o número de contaminados por Covid-19 na Copa América: 33 atletas e 19 prestadores de serviços; no dia seguinte o número eram 65, e contabilizados de forma distinta. Os corpos mais espetacularmente literalmente financeiramente valorizados do mundo — os dos homens cis jovens do futebol — estão sob risco. Estou fazendo esta anotação para a posteridade, visto que frequentemente repito que o patriarcado é um sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis.

Motociata

Essa motociata deveria ter sido chamada de omiciata (ou patriarcadociata, já que nemtodoomiciata…)

CPI da Covid-19 1: Mulheres e ciência

Este texto é registro feminista do meu apreço pela Dra Natália Pasternak, depoente na CPI da Covid-19, e que em toda e qualquer participação na sessão contribuiu com tremendas clareza mental e expressiva, se apoiando em retórica e didática impecáveis, explanando questões indisputáveis com a firmeza que só o rigor científico oferece. Natália não racionou lógica, e entregou a dureza da realidade de forma acessível, porém nunca simplista. Sua lucidez e gerenciamento da razão oferecem  um imenso alívio desse espetáculo midiático, tão necessário para revelar a absurda perversão da realidade que é o método Bannon, digo, Bolsonaro.

CPI das Covid-19 2: …já o Heinze

O Heinze na CPI da Covid-19 representa aquele seu parente que não aceita a veracidade da ciência, e fica fazendo o triste papelão de véio gagá e teimoso, que seria apenas engraçado e irritante se o que eles defendem não fosse fascismo, mas que acaba  compondo hoje um dos estratos mais perigosíssimos da população brasileira: o dos que espraiam o mal através de soberba ignorante.

CPI da Covid-19 3: Fazer a Pasternak

“Pasternakizar”, “Fazer a Pasternak”

Verbos;

De Pasternak, Natália, cientista e diamante da CPI da Covid-19, Brasil 2021;

Significado: Fazer divulgação científica de qualidade; Impulsionar a cultura para o entendimento de que ciência não é crença, é método; Usar momentum com sabedoria e elegância para devolver à narrativa sobre a pandemia a seriedade e descomplicação que o rigor científico oferecem; Criar metáforas e jargões úteis e factuais, de fácil reprodutibilidade midiática, e que sedimentam o entendimento de que existem métricas objetivas com que descrever a realidade, de forma a contribuir com a erradicação de disputas de poder que se fantasiam de embates morais e/ou ideológicos.

CPI da Covid19 4: Juramento de Hipócrates

E os médicos e médicas que receitaram Ivermectina, Azitromicina, e Hidroxicloroquina para pacientes que vieram a óbito por conta de reações adversas a medicamentos que nem precisavam muito menos deveriam ter tomado? Os conselhos regionais e federal de medicina farão essas investigações? Como a classe médica vai questionar seus pares cuja prática foi de encontro ao que a prática médica se propõe a ser? Vão levar adiante o juramento de Hipócrates ou vamos, nós mesmos, fazer julgamento de hipócritas?

Autênticah

“Ela é autêntica, por isso todo mundo gosta dela”, dizem sobre a Juliette, cuja carreira não acompanho pois não sou exatamente audiência do BBB, mas como brasileira na internet fico inevitavelmente sabendo de uma ou outra coisa a respeito de participantes.

Olha. Pode até ser verdade que, no caso dela, foi a autenticidade dela o que fez o Brasil gostar dela, e não vou fazer essa disputa justamente por não conhecer a mulher o suficiente.

Mas. “Ser autêntico” está longe de ser um critério que atraia o gosto popular.

No Brasil, sobretudo, quem é sucesso de público é sucesso de público porque ou é conservador ou porque conseguiu dar alguma espécie de tom, cara, roupagem, linguagem de conservadorismo para pautas progressistas. Reparem.

Vejo mais autenticidade, por exemplo, em ilustres desconhecidos que fazem trabalhos verdadeiramente revolucionários, e são sumariamente ignoradas, ignorades e ignorados pela massa… justamente por causa de sua autenticidade.

Mirem-se no exemplo das mulheres… da China?

Esta excelente reportagem de Macarena Vidal Liy para o EL PAÍS Brasil publicada em 06/06/2021 evoca o desconforto que surge do reconhecimento do quanto nossas vidas, individual e socialmente, são moldadas por parâmetros e limitações impostas hegemonicamente através da cultura*. Mas o texto também levanta emoção feminista, sobretudo pelos depoimentos das entrevistadas, cuja graça e candura li vibrando.

A continuação do raciocínio sobre implicações e desdobramentos das restrições impostas pela China em suas políticas familiares deixo para quem lê este texto. Mas um resultado — e um que, imagino, tenha aparecido completamente inadvertidamente para quem não leva a sério os movimentos contra-hegemônicos que os feminismos vêm fazendo — foi a clareza com que as chinesas não apenas enxergam e reportam o ônus do trabalho doméstico e as formas como ele é esperado de mulheres, mas também com que usam exatamente essa perspectiva como justificativa para escolher cuidarem de si mesmas.

Uma das características tão certas e recorrentes de modelos sociais patriarcais quanto sua lente cisheteronormativa, seja na realidade ou na ficção, é mulheres estarem a serviço desta sociedade, e serviço gratuito, que se dá sob múltiplas formas de cuidado.

Da linguagem marxista, passou-se a chamar este tipo de trabalho de “trabalho reprodutivo”, e as múltiplas análises feministas em existência desde então, sobretudo na economia e na sociologia do trabalho, vêm sub-categorizando e explorando, em configurações diversas, a imensa dimensão das tarefas que recaem sobre mulheres por pouco ou nenhum dinheiro.

E sejamos francas: não é só na China que há sobre as mulheres a expectativa pelo cumprimento destas tarefas, seja das famílias, sob a forma de pressão, de homens adultos que não hesitam em folgar, ou do Estado e economia e suas péssimas políticas públicas e corporativas.

Estas chinesas, ao reportarem tão candidamente os porquês de não quererem participar de um modelo de existência social que necessariamente as colocará em posições de responsabilidade não recompensada por funções de cuidado, escancaram o problema. A triste ironia é notar que, ao falarem sobre como planejam suas vidas, elas soam impressionantemente… como todos os homens que a gente conhece. (Alerta patrulha do #nemtodohomem: vão tomar no… braço, uma Sinovac de preferência.)

*Neste caso, especificamente, e muito evidentemente, diretamente pelo Estado. E aqui talvez seja também de bom ou péssimo tom dizer que a construção frasal “hegemonia imposta culturalmente” pode soar como redundância pura em alguns círculos, mas vale escrevê-la, e repetidamente e de mais de um jeito, pela cadeia de raciocínio que ela pode suscitar.

Sororidade

Eu não entendo por que se interpreta o conceito de sororidade como: ser amiga de todas as mulheres (plmdds, isso é impossível); ser amável com todas as mulheres (desnecessário); ser acrítica das mulheres (isso é tão infantil); enfim, ser sonsa, amiguinha, queridinha, belinha, recatadinha do larzinho. 

Sororidade, que pode ser pensada e definida de muitas formas, são as aplicações práticas da noção de que vivemos no patriarcado, por isso é importante desestabilizar o protagonismo dos homens a partir de alianças entre mulheres. Estas alianças entre mulheres que desestabilizam o poder masculino é sororidade, não levar bolo pra amiga. Afetinhos assim, que dão sentido para a vida emocional, podem  até ser sororários, mas sororidade não são esses afetinhos; o bagulho é político. 

Eu sempre penso na sororidade como o que Adrienne Rich chamou de “contínuo lésbico”, um conceito que não é sobre desejo, mas sim sobre a união política entre nós, e que promove e sustenta o protagonismo das mulheres sem a necessidade de balizar, pelos homens, as nossas empreitadas. Afeto é vital, mas ninguém precisa ser afetuosa para ser sororária.

Discernimento, gente.

Há que desafiar a hegemonia

Sobre “desafios” que consistem de exercícios para ficar gostosa e/ou performances de sensualidade: é perversão com fundo de misoginia chamar esse tipo de coisa de “desafio”. Estimular mulheres a usarem nossos recursos, tempo e energia para que trabalhemos na promoção de nossas próprias aparências, sob a linguagem da perseverança, é fantasiar exploração com discurso inspiracional. Auto-cuidado, amor-próprio e desejo não deveriam ser desafios, muito menos resultar em imagens hegemônicas e estandardizadas.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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