O feminismo negro convoca a uma mudança estrutural necessária à sociedade. 

Por Halina Leal.

Em tempos de pandemia de Covid-19, as desigualdades de gênero, raça e classe tornam-se mais evidentes. No Brasil, onde negras e negros são vítimas das disparidades sociais, do preconceito e da discriminação racial, a crise é acentuada, revelando a vulnerabilidade desta população.

Tal vulnerabilidade é histórica, tendo em vista o racismo histórico e estrutural que naturaliza as situações desiguais das pessoas negras na nossa sociedade. O racismo, ou seja, a forma sistemática de discriminação racial e que resulta em desvantagens ou privilégios, dependendo do grupo racial ao qual os indivíduos pertençam, invisibiliza e silencia grupos racialmente identificados. Suas demandas não são consideradas como importantes e no contexto da pandemia não é diferente.

No Brasil, o governo federal não exigiu a coleta de dados raciais para os casos de Covid-19 até a segunda semana de abril e o fez somente após a pressão de movimentos negros, entidades de classe e associações científicas. Isto revela o descaso do poder público com esta população. Mesmo tardios e nem sempre com qualidade que permita análises detalhadas que desvelem as desigualdades raciais em saúde, os dados são reveladores.

Em abril, o Ministério da Saúde já apontava para altas taxas de mortalidade por Covid-19 entre pessoas negras, incluindo aquelas que se identificam como “pretas” e “pardas” no censo demográfico. Dados coletados no mês de maio por pesquisadores para mais de 5.500 municípios mostram que 55% dos pacientes negros, hospitalizados com Covid-19 em estado grave, morreram em comparação com 34% dos pacientes brancos. (ARAÚJO e CALDWELL, 2020) 

A situação das mulheres negras é peculiar. Para além do racismo que faz com que a vulnerabilidade anteriormente descrita as atinja, sobre estas mulheres incide também os efeitos do sexismo. Em função disso, as mulheres negras encontram-se na base da sociedade. O que significa, por exemplo, receberem os menores salários em comparação com homens negros, mulheres brancas e homens brancos (IBGE, 2019); sofrerem maior violência obstétrica, 65,9% das mulheres que sofrem este tipo de violência são negras (FIOCRUZ, 2017), serem as maiores vítimas de mortes maternas, 62,8% destas mortes, e feminicídios, 61%, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019.  

Na pandemia, as mulheres negras têm sofrido o impacto da doença com maior precarização de condições de trabalho e sobrevivência e exposição a situações de violência. Neste período, o trabalho doméstico tem sido essencial e são as mulheres negras que constituem a maior força de trabalho doméstico no país, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Por causa disso, muitas não fizeram o isolamento, estando mais propensas a serem contaminadas pelo vírus, além de a maioria não ter locais adequados para deixar seus filhos enquanto trabalha. Nas regiões periféricas, muitas mulheres negras estão sustentando a família e muitas, com companheiros desempregados, sofrem violência doméstica de modo mais frequente.  

O “peso” da interseccionalidade (sobreposição) de opressões de gênero e raça tornou-se mais evidente na pandemia, o que torna mais evidente a necessidade de um movimento que coloque as mulheres negras no centro dos debates e reivindicações e que as tire do lugar de invisibilidade e silenciamento. Aí reside a necessidade do feminismo negro. 

Feminismo negro designa o movimento teórico, político e social protagonizado por mulheres negras e que busca dar visibilidade às peculiaridades das demandas deste grupo de mulheres. Essas demandas estão relacionadas à interseccionalidade de opressões que implica em múltiplas situações pelas quais passam estas mulheres e que as colocam à margem do poder e da representação, em diferentes contextos.

O objetivo do feminismo negro é o desenvolvimento do empoderamento das mulheres negras a partir de si mesmas, de discursos próprios e de autoidentificação, tendo em vista a justiça social e a modificação das estruturas sociais. Nesses termos, este empoderamento não está direcionado pura e simplesmente para conquistas individuais, mas às coletividades de mulheres negras que desenvolvem um entendimento de sua condição social e política, de sua história e de suas variadas habilidades, autoafirmando-se e trilhando caminhos de superação das condições impostas pelas desigualdades sociais. 

O feminismo negro, ao dar visibilidade ao conjunto múltiplo e simultâneo de discriminações que recaem sobre as mulheres negras e que definem fortemente posições e possibilidades sociais deste grupo, aponta o quanto as questões de raça e gênero estão entrelaçadas com as questões de classe. 

Este é um movimento que foca, num primeiro momento, nas mulheres negras, mas convoca para uma mudança estrutural necessária à sociedade. É nesse sentido que o feminismo negro envolve não somente a libertação das mulheres negras individualmente ou enquanto grupo, mas envolve também a libertação de homens negros, mulheres não negras, comunidade LGBTQIA+ e todas e todos em situações de desigualdade e opressão. 

Em última análise, ao refletir sobre as bases dos sistemas opressivos e desiguais, o feminismo negro fortalece e amplia seu campo de atuação enquanto um movimento social e político. Ele abarca distintos segmentos sociais, propondo mudanças estruturais em sistemas políticos, econômicos e sociais reprodutores de desigualdades, violências e opressões.

Referências
ARAÚJO, Edna e CALDWELL, Kia. Por que a COVID-19 é mais mortal para a população negra. abrasco.org.br. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtracismoesaude/2020/07/20/por-que-a-covid-19-e-mais-mortal-para-a-populacao-negra-artigo-de-edna-araujo-e-kia-caldwell/

LEAL, Halina. Feminismo Negro. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas: Mulheres na Filosofia, v. V.6, p. 16-23, 2020.

*Halina Leal é Doutora em Filosofia/USP, com estágio em Stanford University. Pós-Doutorado em Filosofia-UNIOESTE. Professora da FURB, líder do GENERA-Grupo Interdisciplinar de Pesquisas em Gênero, Raça e Poder.

**Esse artigo foi publicado originalmente na Revista Valente, do Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado de SC (Sinjusc).

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