Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, declaração essa de cunho liberal-capitalista, construída entre os escombros e os genocídios do Pós-II Guerra, que destruiu cidades, países inteiros e matou – pelo que nos contam os livros de história 11 milhões de pessoas, e entre judeus, ciganos, pessoas com deficiências, homossexuais e comunistas –, encarcerou e mutilou em média outros 18 milhões, estabeleceu a presunção de inocência e o julgamento justo e imparcial como premissas às construções de Estados Democráticos na contemporaneidade. São estes os artigos da Declaração/1948 que tratam do assunto:

 Art. 8: Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Art. 9: Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Art. 10: Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Art. 11: 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. (…)

Desta forma, nossa Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e é ela a Carta que deve balizar as discussões sobre o assunto por estar ainda em vigor (quer queremos ou não!), estabeleceu como direito e garantia fundamental que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII; CF/1988).

Diferentemente do que vem tangenciado as decisões populistas do Supremo Tribunal Federal (STF), que após 29 anos resolveu alterar sua compreensão, que não por acaso coincide com a crescente propaganda de criminalização da política, direcionada especialmente aos partidos políticos situados “à esquerda”, trata-se de uma cláusula pétrea, que, como disse certa vez Rogério Magri (Ministro de Collor), é “imexível”.

No campo do Direito Constitucional essa impossibilidade de alteração se dá pela via reformista, ou seja, a única forma de alterar cláusulas pétreas (lembrando que a presunção de inocência é uma cláusula pétrea) é por meio de novo processo constituinte, com vistas à promulgação de outra Constituição.

O que definitivamente não é o caso.

O STF mesmo sendo o órgão máximo do judiciário, com atribuições de vigilância à Carta Constitucional, não poderia jamais interpretar livremente uma garantia fundamental.

Mas fez.

E fez da maneira mais cruel e torpe, nunca vista antes na nossa História do Brasil.

O que vimos ontem foi um julgamento de exceção e com a declaração expressa de que o STF é uma instância política, e que a maioria dos nossos Ministros – que por ironia do destino foram escolhidos pelos Governos Lula e Dilma, que realmente acreditaram e acreditam no modelo de estado tripartite, com autonomia e independência – têm partido, sendo esses partidos alinhados “à direita” e conservadores, comprometidos com o grande capital, as grandes corporações, a grande mídia e, especialmente, com o projeto do Golpe de 2016, que depôs a Presidenta legitimamente eleita, Sra. Dilma Vana Rousseff (que a posteriori, inclusive, o próprio STF admitiu não estarem presentes a materialidade e autoria dos crimes de responsabilidade fiscal atribuídos a Ela).

Como venho me manifestando publicamente, nos espaços onde dialógo, o STF é uma peça importante no golpe, o que reforça a fala de Romero Jucá gravada certa vez e jamais processada com a eficiência e atenção dado ao Ex-Presidente Lula: “com Supremo, com tudo”.

O “grande acordo nacional” – das elites econômicas e financeiras nacional e internacional – nos foi servido ontem, numa sessão digna de “blockbuster” global.

O dia em que toda a grande mídia internacional voltava suas lentes à Capital Federal.

Não é a primeira vez, mas por certo ontem foi uma das mais vexatórias e estarrecedoras. Eu, particularmente, ainda não consigo traduzir meus sentimentos em palavras.

Todavia, para além do debate político partidarizado assistido ontem, o que esta decisão vai interferir em todos os outros Silvas do nosso país?

O que eu tenho a ver com isso?

Vamos ao que de fato mais me importa neste cenário desolador.

Inicialmente, digo que parte da população ficará imune a esta decisão, justamente as classe mais ricas e abastadas, pois as Políticas Criminais não são destinadas a elas, e quando por desaventura caem nas garras das Agências de Controle Penal, são absolvidas e liberadas, uma vez que a estes estratos assistem-lhes todos os direitos e garantias. Eles não são os alvos selecionados (é o que tanto se fala de seletividade do Sistema de Justiça Criminal).

Às e aos Demais, as e os Silvas desafortunados, cuidado!

Você tem tudo a ver com isso. Esta decisão recairá, mais uma vez, sobre suas costas e de toda sua família. É da sua liberdade enquanto responde um processo crime que versa esta decisão (e aqui sou obrigada a reconhecer a declaração de Gilmar Mendes, por mais ressalvas que eu tenha a ele).

Esta alteração da lógica principiológica, que altera a presunção de inocência à presunção de culpa (mais uma adaptação tupiniquim da processualistica populista penal estadunidense, que você assiste em “law and order” e “criminal minds”), agrava o já violador e torturador Sistema Prisional e Penitenciário brasileiro, esse sistema que já desbancou há muito as leis da física, de que dois corpos distintos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço e ao mesmo tempo.

Os censos carcerários nos dizem coisas muito importantes:

  1. não temos vagas pra tanta gente sem supressão de direitos básicos, incluindo a dignidade;
  2. já temos quase metade da população carcerária cumprindo prisões cautelares;
  3. está se criando uma nova modalidade de cautelaridade, o que importará previsão de (não)vagas à execução provisória da pena;

O que faremos com este “grande encarceramento” (ou encarceramento em massa conceituado por diversos autores)?Esta, parece, uma preocupação que o STF pouco se importa. Está preocupando no julgamento de exceção e esquece que a sua exceção vira a regra aos pobres mortais do andar de baixo.

Importante destacar neste debate é que “Esta limitação prévia e geral o direito a recebe da obrigatoriedade de reconhecer a todo ser humano o caráter de pessoa, isto é, de ente capaz de autodeterminar-se (…) [e que] o direito aspira regular condutas de pessoas e não pode dispensar ao homem tratamento diverso (…)” (ZAFFARONI e PIERANGELLI, Manual de direito penal brasileiro, p. 83). Ainda, afirmam que a função principal do Estado é a proteção dos direitos e, como salientado acima, leva-se à reflexão de que ao Estado cabe a proteção, acima de qualquer outra, dos direitos humanos. Neste caso, estamos falando do princípio da dignidade humana indelevelmente.

Muito mais acima que a garantia da – do que se ouviu ontem – de fim da “sensação de impunidade” e atenção ao “clamor social”, encontram-se a defesa dos Cidadãos, ou melhor, das tantas e dos tantos Silvas, finalidade absoluta sobre todos e outros argumentos e direitos, mas o STF concretamente virou suas costas.

O que se viu ecoado nas narrativas dos Ministros do STF é o que minha Querida (Des)Orientadora Vera Andrade estabeleceu como sendo A ilusão da segurança jurídica, que mostra que “(…) as funções instrumentais e socialmente úteis declaradas pelo seu saber oficial com as funções reais da pena e do sistema pode-se concluir que estas não apenas têm descumprido, mas sido opostas às declaradas” (ANDRADE, A ilusão de segurança jurídica, p. 291). Explica: “O fracasso das funções declaradas da pena abriga, portanto, a história de um sucesso correlato: o das funções reais da prisão, que, oposta às declaradas, explicam sua sobrevivência e permitem compreender o insucesso que acompanha todas as tentativas reformistas de fazer do sistema carcerário um sistema de reinserção social. A história do projeto ‘técnico-corretivo’ do sistema carcerário é a história do seu fracasso (…)” (ANDRADE, Op. Cit, 291-92).

Outro fator de suma importância e que deve ser pontuado é de que está se falando aqui de aplicação antecipada de pena (o que se compara à prisão cautelar, de caráter instrumental), e que se tem ainda princípios e ritos com vistas à apuração do fato delituoso e formulação definitiva do juízo de culpa e de materialidade.

Desta forma, antecipando-se o que não se poderia antecipar, temos o que na criminologia compreendemos como a eficácia invertida do sistema penal (cf. ANDRADE, Sistema penal máximo versus cidadania mínima, p. 133), ou seja, a lei penal diz que sua função é a de proteção e de garantia, mas acaba por servir de mecanismos de controle sóciopenal – sejam eles formais e informais, com o objetivo concreto de seleção e contenção de, salvo raras exceções como a que vemos, tem destinação e endereços certos, e não é o do Silva que dizem ser dono de um triplex no Guarujá, mas, sim, de todas e todos os outros tantos Silvas em grande parte não brancos, residentes nas favelas, periferias e comunidades, das zonas urbanas e rurais, trabalhadores e subtrabalhadores, mercadores ilícitos, não letrados, não alimentados, não aposentados e com tantas outras garantias de direitos historicamente negadas.

Mas pior que tudo isso neste debate e que preciso indagar: você já se questionou sobre as consequências e os impactos que uma execução penal antecipada pode causar com o sujeito preso injustamente?

Os presos cautelares absolvidos ao final da ação penal transitada em julgado sem dúvida alguma sabem a resposta.

 

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  • Daniela Felix

    Mulher, feminista, comunista e militante de Direitos Humanos. Mestre em Direito PPGD/UFSC. Advogada Popular. Articulador...

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