O que esperar da próxima presidência no combate à violência sexual?
O 30 de outubro, felizmente, marcou a derrota do governo Bolsonaro nas urnas e a manifestação do desejo do povo brasileiro por uma vida com dignidade e um governante dotado de humanidade. A partir desse momento histórico, é possível pensarmos no futuro de fato e sair do modo de contenção de danos em que fomos obrigadas a nos colocar nos últimos quatro anos, na tentativa, muitas vezes vã, de evitar a perda de mais direitos e o acirramento das desigualdades de gênero. Podemos finalmente pensar no que queremos e precisamos, não só para impedir o retrocesso, mas para caminharmos rumo a um Brasil de mais igualdade, progresso e justiça.
O trabalho será árduo, como nunca deixou de ser, e será preciso que construamos estratégias eficientes para derrubar as visões deturpadas de gênero e sexualidade promovidas pelo último governo e por uma tradição secular de um sistema sexista que, mesmo diante de muitos avanços, não se dá por vencido.
Precisaremos lidar com narrativas que versam que educação sexual significa “ensinar crianças a transar” e distribuir “mamadeira de piroca” e “kit gay”; discursos que propagam mitos de estupro e transferem para as mulheres a responsabilidade de evitar a violência sexual, como se isso fosse mesmo possível; políticas e atuações institucionais que minimizam e até mesmo apagam crimes sexuais que vitimaram meninas e mulheres, na intenção de causar pânico moral e negar o direito ao aborto legal, seguro e gratuito.
Portanto, é importante que comecemos a traçar essas estratégias, a pensar nas providências que o próximo governo deverá tomar para garantir nossa liberdade e nossa segurança. E o combate à violência sexual tem um papel fundamental nisso tudo, a prática dessas condutas há muito é usada como instrumento de manutenção e agravamento de desigualdades de gênero, pois condicionam as mulheres a um medo constante, que limita escolhas e horizontes.
Manter mulheres nesse temor ininterrupto viola não só a liberdade sexual, mas a liberdade de locomoção e o próprio livre arbítrio, piorando muito nossa qualidade de vida. E é a fomentação da cultura de estupro que torna isso possível.
Através da negação da sexualidade feminina e da propagação de desinformação sobre o corpo e o papel social das mulheres, o controle sexual funciona como manifestação de poder e ferramenta de coerção. Jamais poderemos nos esquecer da forma como as mulheres foram tratadas na atual gestão, de todas as declarações misóginas do presidente e, sobretudo, todas as medidas tomadas ativamente para a retirada dos nossos direitos, como cortes no orçamento e desmontes de políticas públicas de segurança e emancipação, que formaram a tônica dos quatro anos de mandato.
A guerra não é apenas contra o indivíduo que perdeu as eleições, mas contra uma fundação muito profunda, que nos acorrenta em posições desiguais e incentiva o uso da violência como forma de dominação. Fundação que foi reforçada nesse governo, mas isso não significa que não possa ser desmantelada.
Já na transição é possível que esse trabalho seja iniciado, com a nomeação de pessoas importantes na luta de combate à violência contra a mulher e na busca de equidade na composição das equipes. É, sem dúvida, um longo caminho a ser trilhado, que começa na formação de um grupo diverso e passa pela construção de projetos que visem proporcionar a segurança, o bem-estar e a preservação da liberdade das mulheres.
Falando especificamente em violência sexual, é de suma importância que sejam criados mecanismos de redução da subnotificação desses crimes, que atualmente passa dos 90%. Os motivos mais comuns para que uma mulher deixe de denunciar estão diretamente ligados aos mitos de estupro que permeiam a sociedade. A vergonha, o medo, o sentimento de culpa e a descrença no sistema são fatores impeditivos para que uma mulher exponha ou mesmo admita que sofreu violência.
E, para aquelas que buscam ajuda, a receptividade dos mecanismos de justiça também não é das mais estimulantes, havendo pouco preparo dos profissionais que recebem a denúncia e quase nenhuma garantia da segurança de quem reporta esses crimes. Os cortes de investimento em estruturas de atendimento primário como as Casas da Mulher e as delegacias especializadas deixaram essas vítimas ainda mais desamparadas.
O combate aos mitos de estupro é uma política de longo prazo que precisa ser encaminhada o quanto antes. É indispensável a inclusão de programas de educação sexual e de gênero nas escolas e nas comunidades, para dissolver a reverberação de crenças preconceituosas e estereotipadas sobre o que seria violência sexual e sobre o comportamento da vítima e do agressor nessas situações.
É urgente descontruir as ideias de que estupros só acontecem quando há violência aparente ou que parceiros não estupram, por exemplo, discutir sobre as consequências dessa violência e abolir as tentativas de justificar as agressões.
Não podemos mais ter a inversão do ônus da prova e a transferência de responsabilidade como praxe, não podemos permitir que a revitimização siga sendo regra e que mulheres sejam repetidamente violadas pelo sistema de justiça.
Importante ressaltar que essas discussões devem ser trabalhadas entre ambos os sexos, para diminuir a tendência que homens em geral e até mesmo mulheres têm de concordar com os mitos de estupro. Acabar com o sistema invisível de cumplicidade masculina que refreia a percepção dos homens sobre comportamentos violentos entre si e com a perversa falácia de que mulheres que se adequam aos papeis sociais exigidos delas não são passíveis de serem estupradas. A submissão e limitação de comportamento não podem ser as únicas ferramentas disponíveis para a nossa sobrevivência, até porque, na realidade, não dão garantia de absolutamente nada.
Não estaremos mais seguras enquanto não for solidificado o entendimento de que a violência sexual afeta todas as mulheres, independente de posição social ou comportamento. Não estaremos protegidas enquanto imperarem mitos de que estupros acontecem somente com vítimas que desviam do padrão imposto e só são praticados por “monstros”, jamais por homens comuns, “cidadãos de bem”. Precisamos de um governo que não minimize o impacto negativo causado pela violência sexual na sociedade como um todo e que atue ativamente, apoiando a luta das mulheres para quebrar essas correntes.
Basta de representatividades vazias de figuras como Damares Alves e Michelle Bolsonaro, que trabalham a serviço de um sistema que nos quer submissas e domesticadas, “ajudadoras” dos homens ao nosso lado, cuidadoras essenciais. Chega de usar o discurso da liberdade feminina como forma de transferir para nós a responsabilidade de evitar violência, seja sendo recatadas ou andando armadas, de potencializarem o risco de sermos feridas e mortas, colocando armas de fogo na mão de agressores e normalizando as violências praticadas por eles.
É preciso, antes de tudo, admitir a complexidade do problema, para pensarmos em táticas duradouras e soluções a longo prazo.
Reconhecer que questões sociais como a pobreza e o desemprego afetam mais as mulheres, especialmente as negras e pardas; que até hoje recebemos salários menores e somos sobrecarregadas com o trabalho remunerado e a responsabilidade pelo trabalho gratuito de cuidado. Compreender que todas essas vulnerabilidades nos tornam menos emancipadas e mais suscetíveis a sofrer violência sem poder reportar. Evidenciar, sem demagogia, as grades invisíveis que ainda nos cercam através do controle social e de regras de moralidade que nos mantém em situação de aprisionamento.
Mais que tudo, precisamos ser ouvidas. Precisamos não somente de dignidade, que é o básico, o mínimo, mas de voz e protagonismo. Sobre os assuntos que nos afetam diretamente e todos os outros mais, pois somos igualmente parte da sociedade. Carecemos de uma administração representativa e equânime, composta por mulheres, negras, indígenas, LGBTQIA+ e com deficiência, trabalhando juntes na luta para reunir os escombros de um Brasil castigado, retomar a solidariedade como princípio norteador da construção de políticas públicas e reacender a compaixão latente no povo brasileiro, como bem lembrou a socióloga e futura primeira-dama, Janja.