É desnecessário explicar aqui neste espaço que estamos vivendo um regime de exceção, um golpe civil e institucional, dado pela deposição da Presidenta Dilma em 2016, uma Presidenta legitimamente eleita por mais de 54,5 milhões de Cidadãos e Cidadãs, e que tem como objetivo fundante e urgente o fim de toda e qualquer perspectiva de um Estado de “Bem Estar Social”, nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, para, enfim, declarar-se Estado Liberal, mesmo que decolonial, dependente e periférico.

Diferentemente de todos os Golpes contados pela História, trata-se de um Golpe que não se utiliza diretamente de mecanismos de violências físicas reais, ao contrário, os requintes de crueldade são tão refinados e revestidos de um verniz de legalidade, que o senso comum, lobotomizado pela mídia golpista, ainda sequer se deu conta do futuro nebuloso posto no fim do túnel – se é que este túnel tem fim.

Diferentemente do proposto pelo governo ilegítimo, de que trilharíamos a “ponte para o futuro”, o que se verifica na prática é que estamos em cima de uma pinguela para o passado (inclusive, foi FHC que resumiu assim este projeto).

Estamos entre o abismo e o retrocesso.

Como dito, vivemos nós (leia-se, classes medias e baixas) este Estado de Exceção, que tem como projeto, urgente e emergente, estabelecer e fortalecer as bases capitalistas-liberais hegemônicas, do alto capital rentista, sendo as linhas de cortes políticas os limites entre classe, gênero, orientação sexual e raça. Ou seja, o golpe é classista, machista, do patriarcado, racista, lgbtfóbico, conservador e, acima de tudo, violento. Neste sentido, é ainda correto afirmar que a centralidade do projeto de Estado, que representa o interesse do capital e de seus investidores (em sua maioria branca, rica, conservadora, heteronormativa e preconceituosa), classifica-se como: estado-capitalista-neoliberal-global-patriarcal-machista-racista-misógino.

Diante deste cenário, é fácil compreender que não será este Estado que irá se comprometer com a efetivação das políticas públicas de inclusão social, ao contrário, tem como tarefa a usurpação, precarização e extirpação. Fácil perceber quando se analisam as Reformas Trabalhista e Previdenciária – melhor seria dizer DEFORMAS –, que desnaturam e extinguem políticas históricas conquistadas pela classe trabalhadora. Também é possível se verificar este contexto, quando analisa-se o avanço conservador das pautas ligadas à liberdade sexual das mulheres e todos os programas sociais, políticos destinados ao bem estar das mulheres.

Muitas são e serão as questões importantes das condições das Mulheres neste contexto histórico que precisarão, necessariamente, de maior aprofundamento e compreensões ao longo do tempo, mas aqui joga-se luz ao debate (e sem qualquer pretensão de esgotamento) de duas delas, por se tratarem, ao meu ver, de mecanismos de violências (simbólicas e reais), de extermínio e, quiçá, de genocídio: (1) as questões afetas às mulheres das classes pobres (trabalhadoras, subtrabalhadoras e não trabalhadoras) e excluídas; e, (2) o peso das pautas de gênero e sexualidade no contexto político-legislativo.

Muito embora as áreas trabalhistas e previdenciárias estejam completamente fora do meu campo de conhecimento jurídico, várias análises de juristas e teóricos críticos apontam que as mulheres trabalhadoras e subtrabalhadoras, urbanas e rurais, serão as principais atingidas pelas reformas trabalhista e previdenciária. Recairá sob os corpos femininos o maior peso deste projeto insano de reformulação das relações entre patrões e empregados. Dizem esses especialistas que este peso não se cinge às questões econômicas, mas também às condições de saúde das mulheres, à maternidade e aos filhos/as.

Depreense-se dos processos históricos de regulações do mercado no capitalismo, em oposição à oferta de força de trabalho, que há sempre um coeficiente de controle, que torna grupos sociais mais baratos ou mais caros, conforme a lei da oferta e da procura. No caso, estamos em época de alta demanda de força de trabalho – motivando, inclusive, a proposta da volta da escravidão [horror sem fim!]. Dentro deste contexto o que se verifica é que a carne das mulheres, especialmente das mulheres pobres e não brancas, estão em promoção neste mercado de crueldades.

Tal e qual a outros tempos históricos, o trabalho feminino sempre foi algo a se chamar ou a se dispensar, de acordo como o interesse regulatório, todavia, diferentemente das ocorrências pretéritas, as configurações das famílias heteronormativas não dão mais conta de fazer as mulheres retornarem às atividades domésticas. Nesta matemática ilógica desconsiderou-se dados relevantíssimos produzidos pelo IBGE, sobre Estatísticas de Gênero, que mostra que em 2000 as mulheres chefiavam 24,9% dos 44,8 milhões de domicílios particulares, já em 2010 os números saltaram para 38,7% dos 57,3 milhões de domicílios registrados.

Ou seja, é absolutamente inviável a opção de retirada das mulheres do mercado de trabalho, o que significa dizer que este projeto destinado às mulheres trabalhadoras e subtrabalhadoras as levará à exaustão, ao adoecimento e à morte, sem sombra de dúvidas.

Já o segundo elemento de reflexão, que bem na verdade é o que mais me incomoda, é o peso das pautas de gênero e sexualidade no contexto político-legislativo que tendem à política de extermínio de mulheres, especialmente as mulheres pobres, em sua maioria não brancas e periféricas, seja dos meios urbanos ou rurais.

Além do que temos militado contra o avanço das pautas conservadoras, intimamente ligadas às bases religiosas fundamentalistas, enraizadas e mancomunadas com os poderes do Estado, em seus três poderes, nas esferas horizontais e verticais (sejam em âmbito da união, estados e municípios), que vão da extinção de dotação orçamentária aos programas destinados às mulheres, no campo da saúde, das violências, da atenção à família, passando pela reforma educacional de silenciamento – dado pelo projeto moralista e fundamentalista do “escola sem partido” –, o corte de bolsas assistenciais e de estudos, chegando à indecente e famigerada PEC 181, conhecida como “cavalo de troia” [este apelido foi dado ante a inserção no projeto que inicialmente tinha como proposta a ampliação de direitos de licença maternidade às mães de bebês prematuros, adicionando a definição de “concepção”, enquanto o momento de fecundação do óvulo, o que por sua vez redefine o que há muito se discute na bioética].

Pois bem, para além do debate que já vem sendo muito bem feito, inclusive convergente a tudo que trago aqui, mudanças político-jurídicas e cortes de financiamentos de programas historicamente conquistados, especialmente nos últimos 14 anos nos Governos Lula e Dilma, com a implementação dos Programas Nacionais de Direitos Humanos, bem como a criação de 2 Secretarias Nacionais – de Políticas para Mulheres e Igualdade Racial, que foram extintas no trajeto do golpe, por meio da reforma administrativa –, são marcações importantíssimas para o que denomino de políticas de extermínio e de genocídio.

Falo isso, pois, é irrefutável o dado de que todas essas políticas de atenção às mulheres eram (e as que restam ainda são) voltadas preponderantemente às mulheres pobres, periféricas e não brancas. Ao se cortar financiamentos de programas assistenciais ou aprovar-se projetos que tutelarão os corpos femininos, nos deparamos com políticas de Estado que objetivam a morte de um sem número de mulheres.

Tendo em vista que grande parte das mulheres necessariamente dependem deste Estado para manter as suas vidas e a vida de suas famílias, na medida em que se passa a sonegar essas políticas, temos a real declaração da violência de Estado. O Mapa da Violência (IPG, 2015) já aponta o extermínio crescente de mulheres negras no Brasil, e na medida que se implantam projetos que extinguem todas e quaisquer reações às violências (reais e simbólicas), programas de atenção às vítimas, assistências materiais e as possibilidades de abortos legais, importa chamar a atenção ao genocídio que recairá sobre estas mulheres pobres, não brancas, rurais e urbanas – como exaustivamente nominei ao longo do texto.

E, por fim, quando falamos na criminalização do aborto, proposto pela PEC 181, verificaremos que toda e qualquer Mulher que (e se) chegar à maternidade com indício de abortamento, terá de comprovar se tratar de aborto natural ou os próprios médicos/as e enfermeiros/as farão. O que por si só já é uma situação absurda.

Nesta esteira jurídico-política, a projeção estatística que se aponta é a de aumento das mulheres vítimas de violências domésticas, sexuais, bem como criminalizadas pela prática do aborto ou, o que é mais trágico, a morte em massa de mulheres.

A pinguela para o passado é um projeto real e concreto de um Estado de barbárie, campos de concentrações e holocaustos redefinidos e modernizados, mas com o mesmo objetivo de sempre: a morte, no caso, a morte de corpos femininos exauridos pela regulação estatal.

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  • Daniela Felix

    Mulher, feminista, comunista e militante de Direitos Humanos. Mestre em Direito PPGD/UFSC. Advogada Popular. Articulador...

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