Por Joana Valente e Maria Ligia Valente.

– Os meus meninos? Vão tirar meus meninos de mim? E o que vai ser da minha vida agora?

Ouvi choro e depois silêncio. Rosa havia desligado o telefone. Impactada pela última frase temi pela possibilidade de ela perder, além de seus meninos, o frágil vínculo que tinha com a vida.

Me deixei sucumbir no sofá e me senti caindo infinitamente em um buraco dentro de mim. Não havia chão e só de pensar em Rosa eu me sentia ainda mais aturdida. Sentia latejar um vazio no meu peito, mas era o vazio de Rosa que me achatava, me prensava, me destruía. O vazio de Rosa pesava uma tonelada sobre o meu corpo.

Sem saber ao certo seu paradeiro eu sequer podia procura-la para compartilhar sua dor. Estar jogada naquele sofá, no conforto e na segurança da minha casa, me fazia sentir como se eu também tivesse abandonando-a. Eu precisava olhar os seus olhos e repartir um pouco de humanidade. Em meio à sua tragédia, Rosa talvez se deixasse convencer que não era gente, que não tinha direito, que não merecia consideração. A vida sabe ser lancinante com os desesperados.

Eu conheci Rosa meio ao acaso, enquanto era atendida por uma colega na sala ao lado da minha. Era mais jovem que eu e sofria com a dependência química, por isso os filhos haviam sido acolhidos – duas crianças.

Inicialmente me chamou a atenção seu desespero, depois, à medida que os atendimentos iam acontecendo, pude acompanhar sua energia e esperança para retomar as crianças.

Foram idas ao Fórum, atendimentos no CAPS, busca por trabalho. No domingo havaianas nos pés e Rosa cortava a cidade para visitar as crianças no abrigo. Levava aos filhos chocolates, pirulitos e algumas balinhas. As moedas economizadas para os mimos renderiam um pãozinho a mais que aplacaria a fome pela longa caminhada – mas esta é uma ponderação minha, provavelmente isso não passasse por sua cabeça. Rosa nunca me reclamou da fome, mas ela, a fome, marca o existir do sujeito. Com o tempo a gente começa a perceber.

No dia da visita domiciliar o portão branco levava a uma espécie de desfiladeiro entre casas. Rosa estava na porta e sorria inteira. Tinha todas as janelas abertas e as cortinas voando. Não era a nós que ela esperava, era à sua própria vida que deveria voltar junto com os filhos – o que de fato aconteceu.

Minha colega se aposentou e Rosa transferiu para mim o vínculo que tinha com ela – a quem creditava o favor de ter devolvido-lhe os filhos. Eu insistia que o mérito de ter recuperado as crianças era seu e que, de qualquer forma, seus meninos não deveriam ter saído do seu lado. Mesmo assim, de quando em quando, Rosa voltava ao Fórum para contar que estava cumprindo com sua parte e tinha os filhos bem cuidados e protegidos.

Com o passar dos anos, três novas gestações. Para a tristeza da família um dos filhos foi diagnosticado com um tumor e precisaria de cuidados especiais. Rosa vestiu toda a sua coragem. Buscou recurso médico, viajou para a cidade grande. Foram meses no hospital com o filhinho. Tempos de dificuldade e sofrimento pela saúde de um, a saudade e a preocupação com os outros, a falta de dinheiro. Rosa não aguentou e depois de seis anos teve uma recaída.

Um novo acolhimento, cinco crianças. Novamente Rosa se desesperou, correu atrás de ajuda e aceitou uma internação.  A cidade onde realizou o tratamento era distante. Ela passou por tudo isso sozinha, sem contato com os filhos e com o companheiro e sem o apoio da família. Sei pouco sobre estes dias que viveu, não houve oportunidade para conversarmos sobre eles, mas conhecendo-a, posso imaginar pelo que passou.

Rosa ficou meses na clínica enquanto por aqui o processo dançava o baile dos argumentos e das ponderações: “quanto tempo as crianças vão esperar?”, “o bebê precisa de cuidados especiais”, “Rosa já teve a sua chance”. Relatório em cima de relatório. Atestado em cima de atestado. Mas ninguém perguntou se a família havia recebido acompanhamento continuado da rede, se haviam conversado com ela e o companheiro sobre planejamento familiar, se haviam pensado em renda, habitação, saúde da família.

O veredito foi que Rosa gastara sua chance e, ao fim, depois de tantos anos, eu não consegui fazer nada por aquela mulher. Fui vencida. Rosa perdeu os filhos – mas só os pequenos, porque “eles mereciam uma vida melhor”.

Os dias correram desde aquela última ligação. Eu ainda tinha o choro de Rosa desaguando no buraco do meu peito. Latejava na minha cabeça a última frase dita: “o que vai ser da minha vida?”. Como eco eu repetia comigo mesma, “o que vai ser da vida dela?”.

A resposta não me demorou a chegar. Rosa morreu em um uma noite fria do inverno de 2018.  Na informação no processo a causa da morte conta como overdose, mas eu sei que Rosa morreu de tristeza, abandono e desprezo. Rosa caiu infinitamente no buraco da sociedade que forjamos enquanto eu me mantenho desaguando neste vazio que ficou em mim.

A história de Rosa aconteceu ontem, o mês passado, em todos os anos anteriores. Vai se repetir amanhã, nos próximos meses e nos anos que seguirão. É foto das nossas relações sociais e, por isso, se espelha no Sistema de Justiça em todo seu machismo, racismo e ódio aos pobres. Nós precisamos falar sobre isso.

Advogadas de Mariana Ferrer vão recorrer da decisão de absolvição de André Aranha

*O título tem como referência à argumentação utilizada pelo magistrado na sentença proferida na ultima semana inocentando André Aranha do estupro de Mariana Ferrer.
**As autoras decidiram assinar com pseudônimos.
***Texto inspirado em fatos reais.

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