Como garantir os direitos das crianças nas rotinas diárias já que as demandas de trabalho, de cuidado, de afazeres domésticos nos tomam parte do dia?

Em 2017, o relato de uma mãe inglesa sobre a maternidade real viralizou na internet. A mãe falava das dores do pós-parto, as dificuldades da amamentação, a sensação de solidão, o medo, e o fato de não conseguir fazer mais nada sozinha por estar sempre acompanhada da filha. A experiência da maternidade é demonstrada na maior parte das vezes de forma muito romântica, sem dificuldades. Mas a realidade é bem diferente, e também muda de acordo com os marcadores de classe, raça, etnia, classe e geração. As novas mães, algumas vezes, são acolhidas e acompanhadas por suas mães e sogras, e têm seu companheiro por perto. Há muitas situações, no entanto, em que as mães estão solo nesta jornada e não têm nenhum tipo de apoio. Desde o primeiro artigo desta série quis demonstrar o desafio de como é trabalhar neste momento de pandemia e isolamento social, quando as mães e crianças estão em casa.

As mães que trabalham fora de casa têm ainda o trabalho doméstico a ser realizado, que pode ou não ser compartilhado com outras pessoas. Então, reitero aqui como é difícil manter as crianças em casa sem creche ou escola e acompanhar as crianças em atividades remotas da escola. Muitas mães e pais estão com grandes dificuldades de acompanhar seus filhos nessas atividades. Já as crianças se sentem cansadas, pois precisam da sociabilidade que a escola proporciona e não têm maturidade para estudar através de uma tecnologia como o computador.

Então, nossa contribuição, hoje, é da pedagoga e psicóloga, Regina Ingrid Bragagnolo, que atua na educação infantil em Florianópolis, junto ao Núcleo de Desenvolvimento Infantil da UFSC. A pedagoga tem habilidade e a expertise que muitas mães não tem nesse momento, pois apesar de amarmos nossos filhos e filhas, precisamos muito da escola e suas maravilhosas professoras e professores. Acho que um dos ganhos dessa pandemia é que jamais a atividade educacional foi tão valorizada. Espero que seja recompensado o esforço destas heroínas e heróis que atuam mesmo que sem condições, sem treinamento, em suas casas, com sua internet e seus materiais, proporcionando continuar o aprendizado e a educação de nossas crianças. Com a palavra a minha amiga Regina, companheira feminista de maternagem:

Nesse período de infelicidade coletiva com a crise política e econômica que nosso país vem atravessando, ainda mais agravado pela pandemia onde as desigualdades sociais ficam ainda mais visíveis, destacamos nessa edição nossos esforços para olhar para as crianças. Na edição anterior, colegas feministas apresentaram no cenário brasileiro o lugar da infância marcado pela construção histórica ainda presente, entrelaçando o debate de gênero, etnia/raça e classe social que claramente violam os direitos das crianças.

Hoje, desejamos dar continuidade a esse diálogo construído, colocando em pauta o olhar sobre os/as pequenos/as nos espaços domésticos, já que os espaços institucionais e espaços públicos estão restritos.

Nós mães, feministas, trabalhadoras temos muitas dificuldades nesse período, dentre elas, como demarcar simbolicamente os lugares para o trabalho remoto, trabalho doméstico com cuidados com as crianças. Como garantir os direitos das crianças nas rotinas diárias já que as demandas de trabalho, de cuidado, de afazeres domésticos nos tomam parte do dia?

Sinteticamente, tentamos endossar/acalorar/recuperar elementos que possam ser ferramentas que possibilitam maior aproximação com as crianças:

  1. Escutar as crianças e tentar conectar-se com suas emoções, no sentido de dar maior atenção ao modo como estão significando esse período pandêmico e seus desdobramentos do isolamento social, pois fazem parte desse cenário de medo/temeridade do contágio. Acolher, validar, valorar suas emoções, suas expressões, seus desejos, sendo igualmente importante considerar que possivelmente as relações corpóreas entre as crianças no retorno das escolas irão se modificar. Novos contornos e modos de relacionar-se podem ser visualizados, dado os efeitos subjetivos que a Covid-19 ocasionou também na regulação dos corpos nos espaços domésticos.
  2. Entender estes tempos domésticos prolongados, como momentos de trocas potentes que possibilitam maior intimidade entre mães/filhos/as. Tempos para brincar e se apropriar dos objetos culturais que estão em sua volta, dispor e organizar espaços brincantes e isso não significa explorar apenas brinquedos comerciais, pois o espaço da casa traz por si só muitos objetos que as crianças necessitam de tempo para experimentar ludicamente e fazer desses jogos. Importante ajudá-los quando necessitam, mas também dar liberdade para explorar.
  3. Recolocar/selecionar materiais diversos que as crianças terão acesso, como desenhos animados, músicas, literaturas que rompam com narrativas capitalistas, racistas, capacitistas, machistas. Para exemplificar, ao contar histórias das nossas infâncias, traduzir/apresentar o mundo plural para nossos filhos/as, contrário a relações hierárquicas, violentas etc.
  4. Integrar as crianças as experiências diárias de organização e manutenção dos espaços familiares, com base na compreensão que esses espaços – lugar de cuidado, auto cuidado – possam ser para as crianças também espaços que se sintam parte. Isso se dá de modo simples e possíveis, desde que tem seja seguro a eles, como por exemplo com rotinas diárias de cuidado com as plantas, de colocar ou tirar da mesa, de organizar seus brinquedos, de trocas que rompam com a lógica hierarquiza onde somente as mulheres ocupam os espaços de cuidadoras.

Por fim, vale destacar que no campo da educação infantil, fazemos uso de inúmeras ferramentas conceituais da psicologia, sociologia, antropologia da infância, os quais nos asseguram um olhar e uma relação tranquila com crianças. Já, enquanto mãe, a relação passa pela via do afeto. Para exemplificar, reposicionamos conceitos da psicologia no campo da educação infantil, e entendemos que no percurso do desenvolvimento as crianças têm movimento de contrapor à norma educativa, representada pelo adulto. Pensar, alinhar, adensar esses conceitos nos tranquiliza na medida em que entendemos que faz parte do percurso do desenvolvimento infantil.

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  • Claudia Regina Nichnig

    Claudia Regina Nichnig é historiadora, advogada e doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarin...

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